A SOCIALIZAÇÃO NO DESPORTO ADAPTADO* Paulo Bueno do Nascimento SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 2 CATEGORIAS ANALÓGICAS BÁSICAS BÁSICAS DA FILOSOFIA DA LI- BERTAÇÃO 2.1 PROXIMIDADE. 2.2 TOTALIDADE 2.3 MEDIAÇÃO 2.4 EXTERIORIDADE. 2.5 ALIENAÇÃO 2.6 LIBERTAÇÃO 3 DELINEAMENTO HISTÓRICO DA DEFICIÊNCIA 3.1 ANTIGÜIDADE 3.2 IDADE MEDIEVAL. 3.3 IDADE MODERNA 3.4 IDADE CONTEMPORÂNEA 4 A SOCIALIZAÇÃO NOS DESPORTOS ADAPTADOS. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho surgiu da necessidade de se compreender um núcleo social, representado pelas pessoas portadoras de deficiências (P.P.Ds.), onde o seu corpo (de conhecimentos) manifesta um desejo de atrelar-se ao nosso universo (chamado dominante), utilizando, principalmente, o esporte como veículo de socialização. Os trabalhos desenvolvidos com o esporte adaptado parecem apreciar apenas a designação técnica do esporte. Fundamentar e perpetuar o próprio conceito de jogo: existir um ganhador e um perdedor. Não que este momento não seja válido, mas quando um projeto de trabalho no desporto adaptado possui sua gênesis principal no processo e no discurso de socializar as P.P.Ds. em nossa sociedade - porque eles representam uma classe estigmatizada por sua exterioridade não conformante com as estruturas que compõem o nosso mundo - o discurso não se apresenta de modo claro, o que levanta o questionamento do seu conceito histórico e sua imagem prática. Como este problema margeia e se afigura no campo filosófico, optamos em discuti-lo embasados na Filosofia da Libertação de Enrique Dussel, mais precisamente em suas Categorias Analógicas Básicas, que propõem uma nova leitura das nossas ações com o outro (o distinto). Estas categorias assumem uma nova perspectiva; uma perspectiva de avançar nos conceitos e nas nossas práticas, libertando-nos das raízes alienantes e dos processadores que controlam o poder. 2 CATEGORIAS ANALÓGICAS BÁSICAS DA FILOSOFIA DUSSELIANA DA LIBERTAÇÃO A engenharia do capital como meio de dominação começa com as conquistas dos mares e oceanos, estes povoados por criaturas e seres demológicos que apavoravam e eliminavam todos que ousassem investir em seus domínios. Povoados também estavam da necessidade de novos caminhos, novas terras e novas riquezas. Estas, que por fim, deu aos navegantes a coragem suficiente para descobrir as Américas. Os novos colonizadores escrevendo as suas pegadas nas novas terras, maravilham-se com as suas exuberantes riquezas. Então, remodelam uma nova imagem de Deus, assaltam estas terras em Seu nome e em nome do mercantilismo colonialista. Através da bandeira do ouro, nações são dizimadas (é a eliminação do outro), e os que sobrevivem possuem a liberdade da servidão (é o início da práxis de alienação para a afirmação do projeto de totalidade). É nessa relação de servidão-dominação que se constrói toda a nossa imagem histórica de sul-americanos, e que conforta todas as construções imperiais dominantes (dos engenhos às multinacionais). Contra o centro dominador, "levanta-se uma filosofia da libertação da periferia, dos oprimidos, a sombra que a luz do ser não pode iluminar. Do não-ser, do nada, do outro, da exterioridade, do mistério do sem-sentido," (DUSSEL, 1977, p. 21), parte todo o seu pensamento. Ela formula uma práxis de libertação que parte da formação social periférica, revelando a sua existência e negando as religiões fetichistas de controle social. 2.1 PROXIMIDADE A noção de proximidade perpassa sobre a relação face-a-face entre o Eu e o Outro. O Outro não como diferente, mas sim distinto - ambos são homens, personagens maquiados por uma história política-econômica. É aproximar-se da exterioridade do Outro como realidade. A realidade que provoca uma pulsão de amor de justiça, um exclamor de sentimento pela conquista do desejo do Outro encoberto pelo sistema dominante e descoberto pela leitura de sua face - leitura que compreende a responsabilidade pelo mundo do outro, a conquista de um é a conquista do outro. Assim, o encurtar a distância é o sentido metafísico - Dussel entende metafísica por aquilo que se encontra além do mundo, do ser, que transcende o sistema revelando a sua aparência não como mero fenômeno, mas verdade em sua própria verdade; o Outro é distinto - da práxis da proximidade. A noção de proximidade compreende uma anterioridade anterior a toda origem. Porque "se o sistema ou o mundo é o anterior às coisas que habitam nele; se a responsabilidade pelo mundo do outro é anterior ao próprio mundo; aproximar-se à imediatez da proximidade é a anterioridade de toda anterioridade" (ídem, p. 23). A proximidade possui uma dimensão originária e histórica. A originária se fundamenta na relação primeira com o outro humano. A criança antes de nascer, ainda no ventre materno, manifesta os laços de dependência com a mãe (o outro); dependência de calor, de alimento... A dimensão histórica entrelaça o indivíduo aos condicionantes (histórico, político, religioso, econômico, etc.) que imperam as estruturas do seu viver, do seu existir. A proximidade no seu sentido metafísico, só se realiza com o oprimido, com o diferente ao sistema, que clama justiça, provoca liberdade e invoca responsabilidade, "pois a ação que se desenvolve, o serviço que se presta, não busca recompensa, mas se nutre da bondade" (MANCE, 1996). Ao contrário a proximidade feliz é equívoca. Pois o beijo, por exemplo, pode significar amor como, também, uma forma hedônica, transformando o outro num objeto de consumo. Assim, a proximidade, no sentido utópico da práxis, deve consolidar-se em festa, "[...] mas festa da libertação e não da exploração, injustiça ou profanação. É festa dos iguais, dos livres, dos justos, dos que esperam uma ordem de proximidade sem contra-revoluções, retrocessos" (DUSSEL, 1977, p. 26). 2.2 TOTALIDADE Ao sair da proximidade o homem dá lugar à distância. Neste momento nos cercamos dos entes (coisas-sentido), que se apresentam numa multiplicidade quase indefinida. Os entes estão arranjados sistematicamente dentro de uma ordem, fazendo parte de um mundo; uma totalidade com sentido, com uma função dentro de um determinado projeto (proposta de vida futura como ideal), tendo o homem como fundamento. 2.3 MEDIAÇÃO "A mediação é a qualidade de um ente servir como elemento para a realização de um determinado projeto" (MANCE, 1996). O projeto propõe as mediações para a sua concretização, bem como, os entes assumem diferentes significados de acordo com o mundo (totalidade) de cada um. Nas propostas de mediação o homem se encontra dentro de uma liberdade relativa. Pois na sua escolha para a afirmação do projeto se oculta uma determinação histórica. No entanto a mediação se constitui como possibilidade de liberdade, porque têm em vista a concretização do projeto e não havendo liberdade não haveria o homem, e não havendo homem o mundo (complexo de sistemas instaurados por nós) não nasceria. 2.4 EXTERIORIDADE Este conceito compreende o outro, o que se revela na sua exterioridade, o que se apresenta como liberdade distinta, como realidade fundante, onde o seu sentido não é abarcado pela totalidade instrumental - que instrumentaliza as nossas ações sobre um código imperialista, dominante. Entre mim e o outro, o outro sempre se fundamentará num além do meu conhecer (a sua exterioridade real, metafísica). A exterioridade do outro é pronúncia da deformidade do "projeto da totalidade, que nega ao outro o direito de realizar-se humanamente, historicamente" (MANCE, 1996). Assim, sobre a pulsão de alteridade, amor de justiça real, que transforma a própria realidade, devemos "saber pensar o mundo desde a exterioridade do outro" (DUSSEL, 1977, p. 54), (princípio metafísico). Realizar um projeto de totalidade não como adorno, mas sim, no respeito ao outro no que ele é como distinto. 2.5 ALIENAÇÃO A totalidade em seu plano, tende a eternizar sua estrutura e incorporar toda exterioridade (que põe em perigo a unidade), camuflando a sua face, extinguindo-lhe a sua essência. A alienação consiste na negação do outro como outro, é torná-lo instrumento do ser de outro, através da práxis de dominação, que "é afirmação prática da totalidade e de seu projeto" (ídem, p. 60). 2.6 LIBERTAÇÃO A libertação é a afiguração do outro em sua exterioridade, significar ele (o distinto) na justiça, que requer a sua presença como edificador da própria história. Agora não apenas como objeto de estratégias e táticas, mas sujeito que crítica o total estabelecido, que pronúncia a disfuncionalidade do uno, e parte para a gerência da práxis que instaura uma nova ordem (sem repetir a ordem antiga), um novo projeto de totalidade, que se forma por um processo de transcendência metafísica assentado sobre a bondade e simultaneamente "a um trabalho em seu favor. Não há libertação sem economia e tecnologia humanizada, e sem partir de uma formação social histórica" (ídem, p. 69). 3 DELINEAMENTO HISTÓRICO DA DEFICIÊNCIA A elaboração deste capítulo têm por objetivo alcançar o entendimento da construção conceitual do sujeito deficiente, através do processo evolutivo de "distinção de épocas na História Universal, [que] se traduz numa separação de povos" (MONDOLFO, 1968, p. 19), onde determinados princípios definiram as suas existências ou exclusão na história. Estes princípios estão diretamente ligados a um corpo sócio-filosófico e religioso de conhecimentos que influenciaram a existência de um conjunto de idéias e comportamentos (que estão diretamente ligados a um simbolismo segregacionista para com os não iguais) nos indivíduos que compuseram as suas sociedades. O perfil dos corpos de conhecimentos que definiram cada sociedade, serão analisados sobre a Filosofia da libertação, adentrando em seus ventres para reconhecermos os verdadeiros julgos das ações do homem sobre as P.P.Ds. Os primeiros pensadores procuraram definir matéria, mundo, criação, movimento. Explicar não a heterogeneidade das coisas do mundo, mas também o movimento que as faz existir, a origem do mundo, a ordem que se encontra sob todas as coisas, a entidade geratriz, a idéia reguladora de todo processo de geração e de degeneração. Assim, do mito à razão, nasce a filosofia (mitos de heróis, deuses e semideuses, anjos e demônios, todos na direção da cultura de tipo racional que nos caracteriza hoje). As cidades nasceram com as aglomerações, estas heterogêneas que cada vez mais exigiam regulamentações: as dimensões das relações de todos os povos. Estudando estas relações em determinadas épocas, propiciarão o levantamento e a discussão de questões referentes às P.P.Ds. em nossa atualidade, e em especial à pessoa portadora de deficiência (P.P.D.) nos esportes. 3.1 ANTIGÜIDADE A antigüidade traduziu-se por desenvolver uma sociedade que fundamentou e sedimentou todo o seu pensamento filosófico e o seu saber conceitual sobre uma forma nova e inusitada de pensar. Possui, ao nascer, "um conteúdo preciso: é uma cosmologia, isto é, uma explicação racional sobre a origem do mundo, o cosmos" (CHAUÍ, 1994, p. 13). A filosofia grega, "é uma explicação racional da origem e da ordem do mundo" (ídem p. 32). A sua cosmologia - forma inicial da filosofia nascente - é a explicação da ordem do mundo, do universo, pela determinação de um princípio originário e racional que é origem e causa das coisas e de sua ordenação. A ordem - cosmos - deixa de ser o efeito de relações sexuais entre entidades e forças vitais, deixa de ser uma genealogia para tornar-se o desdobramento racional e inteligível de um princípio originário. (ídem, p. 33). Para os gregos, a qualidade primordial da constituição de todos os seres era a PHÝSIS. "A phýsis é a origem da matéria e da inteligência, é material e espiritual, corpórea e intelectual" (ídem, p. 42). A totalidade da civilização grega se concentrava em torno da phýsis. Ela era a expressão que dava corpo a todo o arranjamento da sociedade grega. Temos que compreender que a sociedade grega estava configurada em um sistema de classes altamente definido, no qual, a compreensão de um indivíduo pertencer a uma classe ou a outra classe (classe dos escravos, dos artesãos, dos militares, dos políticos, dos filósofos) era o ordenamento da phýsis. Nesta divisão social existia o entendimento que aqueles que compunham o seu trabalho pela força física, tendo o seu corpo como instrumento, alavanca de elaboração de algum tipo de utensílio, era digno de pertencer só a esta classe, porque a phýsis ao dar origem a sua existência, o compôs de uma mistura de materiais brutos que davam forma à sua inferioridade presente. No que rege aos filósofos, aqueles que dignificavam o seu trabalho com o uso do raciocínio, estes eram compostos de ouro. Esta divisão altamente classista não se limitava apenas dentro dos muros de suas cidades. Era transferida além de suas fronteiras. Tanto que os bárbaros (figura de expressão utilizado pelos gregos) eram os povos de nacionalidades estrangeiras (chineses, árabes, indus...), considerados, também, de constituição inferior. Portanto os trabalhadores braçais, as P.P.Ds. e aqueles povos eram exterioridade ao mundo grego (o grego era o ser, e eles o não-ser). A linguagem da cosmologia grega estava assentada sobre os pilares da metafísica. Esta metafísica desenvolveu uma visão dualista entre o conceito de corpo e alma, que refletiu nos mecanismos de compreensão e edificação do homem, considerando-o como um fenômeno abstrato. Para Platão, um dos primeiros filósofos a sistematizar o saber clássico, existiam dois mundos: um mundo perceptível ou material, que se caracterizava pelos fenômenos materiais, o qual percebemos "através dos sentidos, que nos dão sensações e imagens que mudam a cada instante, pois têm como objetos coisas perceptíveis" (ZIKAS, 1990, p. 27). Estas coisas perceptíveis nos fornecem impressões confusas, pois somente revelam percepções subjetivas por não traduzirem as suas verdadeiras essências; outro mundo denominado inteligível ou sobrenatural, que está acima das coisas perceptíveis e que encerra as idéias (do bem, do verdadeiro, do justo, das espécies) que são "incorpóreas, essências inalteráveis e imortais" (ídem, p. 28). Aqui, a compreensão das coisas se glorificam em contemplar as verdadeiras essências que comportam o mundo da suprema divindade. Segundo a linha de pensamento platonista, o mundo material em que vivemos foi criado através da personificação das idéias (as verdadeiras essências), que o caracterizava apenas como uma cópia, um pálido reflexo no espelho, pois não apresenta a verdadeira constituição do mundo sobrenatural. E é por isso que "consideravam o corpo humano como uma prisão para a alma [a alma representa o verdadeiro constituinte do mundo das idéias], uma sepultura na vida terrena, porque a vida, como a vivemos, é repleta de pecados e a alma é dominada pelo corpo" (ZIKAS, 1990, p. 23). Sendo este mundo apenas uma representação, o corpo e os sentidos se constituíam como impecilhos para a alma entrar em contato com a verdade e enquanto perdura-se a união (corpo-alma), seria impossível para ela (alma) encontrar a verdade. Assim, a morte adquire o significado de salvação, a "libertação do corpo da alma e a libertação da alma do corpo" (ídem, p. 25 e 26). Libertando-se do contato com o corpo e das carências e prazeres somáticos, a alma contemplaria as máximas do mundo das idéias. A civilização grega se caracterizou, também, por construir uma sociedade organizada sobre determinados valores atléticos, éticos, morais e classistas que embasavam determinadas condutas e práticas que sustentavam toda a concepção dualista de mundo de Platão. Por exemplo, em relação às P.P.Ds. Para os gregos quando o corpo corrompia a alma, esta era castigada cumprindo uma determinada pena (imposta pelo divino). Portanto, os homens que conduziam algum infortúnio (social ou físico) ou uma feiúra visível, estas simbolizavam a sua decadência moral e a pena pelo crime. Então, estas pessoas eram consideradas pela sociedade grega como subumanas, o que legitimava a prática do abandono à inanição e quando em muitas vezes a eliminação. Este pensamento é tão expressivo e concreto, que em várias passagens por suas obras, Platão confirma esta prática, por exemplo: os filhos dos inferiores e os disformes, deveriam ser escondidos ou dado fins desconhecidos para não se misturarem, "se quisermos conservar pura a raça [...]" (PLATÃO, citado por CORBISIER, 1991, p. 173). Os gregos tinham um projeto de mundo que arquitetava a construção do BELO, que estava representado em várias dimensões: a beleza literária; musical; poética; da retórica; corporal e principalmente na expressão reflexiva do saber. Estas reflexões eram mediação para o atinjimento do projeto. Somente aos filhos legítimos da Magna Grécia era herdado conquistar e inserir-se em sua totalidade. Os outros dentro da sociedade grega eram alienados, pois se constituíam em instrumentos que ancoravam os gregos no seu papel de filosofar. A nutrição do filosofar só era possível porque os outros nutriam as funções de arar a terra, de tecer, de modelar o barro, etc. Neste sistema ordenativo as P.P.Ds. não poderiam expressar a realeza do grego. Até porque o portador de deficiência (P.D.) transfigurava a imagem do ser corrupto (mas, mais porque negava todo o projeto de totalidade) auto-merecendo a eliminação do cenário grego. 3.2 IDADE MEDIEVAL Da phýsis grega como expressão da sua totalidade, a idade média construiu o seu projeto de totalidade sobre a imagem de Deus (o princípio originário de tudo). Com esta mudança do elemento da totalidade, os padres e doutores da igreja, que compunham o magistério intelectual da igreja, sacrificam a evolução do pensamento por reinarem sem rivais. Limitam o pensamento a uma obscura manifestação da ação humana - "a fé prevalece sobre a razão, o abstrato sobre o concreto, as palavras sobre as coisas" (LIBERA, 1990, p. 7). Essa obscuridade foi fomentada pelas reflexões sobre o bem e o mal, que alimentou a construção de uma teologia da moral, que regulou todas as questões implicadas no homem. Questões que dão continuidade ao pensamento metafísico grego (de dualidade entre corpo e alma), mas sobre outro véu. Agora o corpo não é considerado como uma prisão, mas sim, como um servidor, uma morada da alma, um "instrumento posto pela sabedoria de Deus ao seu alcance, graças ao qual lhe será dado atingir a perfeição desejada. Sem o corpo, a alma - que por essência específica lhe está ordenada - viveria em constante deficiência" (AMEAL, 1961, p. 378). Essa deficiência está relacionada, segundo Tomás de Aquino, citado por REALI (1990), com o problema do mal (físico e moral), que tem como causa a liberdade da criatura racional, que não reconhece a sua dependência de Deus. "O mal [...] não é causado pelo corpo. Não é o corpo que fez o espírito pecar, mas o espírito que faz pecar o corpo [...]. O mal é desobediência a Deus, é rejeição da dependência fundamental em relação ao Criador. A raiz do mal está na liberdade [no livre arbítrio]" (REALI, 1990, p. 572). O homem está ao mesmo tempo em estreita relação com Deus e na máxima distância. As preocupações filosóficas produzidas pelo ministério da igreja, estavam "estreitamente vinculadas com a problemática cristã da salvação" (CHAUÍ, 1986, p. 37). É a salvação que dá todo o sentido ao ordenamento social da idade média. É ela que explica a subordinação generosa da plebe ao senhoril e ao clero. É utilizada como veículo de alienação, postulando teorias de salvação, do céu e do inferno, dos anjos e demônios, estabelecendo ao homem uma razão de ser, uma vocação (a verdade instaurada pelo clero), que não pode ser traída, sob pena de atentar-se contra os desígnios do Criador; e de mediação que consolida o seu projeto de totalidade e a captação de recursos financeiros para a ostentação de suas barganhas espirituais no trabalho religioso da plebe (classe social situada na categoria de exterioridade de Dussel). Nota-se no pensamento medieval, que ao abordar a problemática da união entre duas substâncias consideradas incompletas (alma e corpo), ruma-se para uma linha de pensamento unitário. Este pensamento é, principalmente, perseguido por Tomás de Aquino, expondo que "é o homem individual que pensa, não a alma; é o homem que sente, não o corpo" (REALI, 1990, p. 572). Essa compreensão advém com o cristianismo, onde o portador de deficiência "ganha alma e, como tal, não pode ser eliminado ou abandonado sem atentar-se contra os desígnios da divindade. Com a moral cristã torna-se inaceitável [a prática grega] da exporição dos subumanos como forma de eliminação" (PESSOTTI, 1984, p. 4). Dotado de alma as P.P.Ds. passam de coisas a pessoas. Passam por uma "expressão que tanto implica a tolerância e a aceitação caritativa quanto encobre a omissão e o desencanto de prover e manter suas criaturas deficitárias" (ídem, p. 4). A doutrina cristã do amor ao próximo e da teologia do pecado e da predestinação, confere às pessoas uma conduta caritativa. As P.P.Ds. ganham a caridade e com ela escapam ao abandono; mas também ganham a cristianidade que lhes acarretam exigências éticas e religiosas. Essa condição cristã os torna culpados pela própria deficiência, sendo esta castigo do céu por pecados seus. Surge a ambigüidade proteção/segregação e a caridade/castigo. O mal significava a traição do homem da sua vocação cristã, e portanto, a divindade o transformava num subumano. Sobre este motivo e outros pretextos filosóficos e teológicos, as inquisições católicas sacrificaram milhares de pessoas, entre elas loucos, adivinhos e portadores de deficiências. Essas pessoas eram consideradas seres diabólicos, produtos de forças ocultas, criaturas tomadas pelo diabo e dignas de tortura e fogueira. A figura do diabo sustentava a base da classe dominante. Porque atrás daquela figura, de toda obscuridade maléfica de suas ações nas almas cristãs, se oculta um movimento de dominação, que manipula os dogmas cristãos e o flagelo de Satã, para manter a ordem do sistema e evitar o desejo da população de uma nova ordem. No final da idade média, com o crescimento e o estudo da natureza patológica das deficiências, extingue-se a visão supersticiosa das deficiências. Entendendo as deficiências como produtos de estruturas ou eventos biológicos, começa-se a "[...] sepultar, pelo menos nos extratos mais cultos da sociedade, a visão demológica ou fanática daqueles distúrbios, agora não graças a razões éticas ou humanitárias mas em virtude de argumentos científicos. " (PESSOTTI, 1984, p. 3). Agora as deficiências passam a ser consideradas como um problema médico, cabendo a ele alterar os hábitos pelo exercício de uma medicina moral. Surge uma nova metodologia (teórica e didática) para o tratamento das deficiências e um programa para a educação especial (modelo de bom senso e humanidade). Com a mudança teórica das deficiências, surgem instituições de recuperação para inserir as P.P.Ds. na sociedade, mas que na verdade desenvolvem uma nova linguagem discriminatória, reforçando o abandono definitivo e o banimento irrevogável da sociedade e de seus recursos. 3.3 IDADE MODERNA A idade moderna advém de um período de crises denominada Renascença. Crises na consciência, a descoberta do universo infinito deixa os homens sem referência e sem centro; crises religiosas, criam-se infinitas tendências, seitas, igrejas e interpretações da Sagrada Escritura (o cristianismo se perde); crises políticas, as relações entre vassalagem e nobres, o papado, são destruídos pelos burgueses aliados a um crescente regime capitalista. Alguns historiadores vêem o Renascimento como um período que criou um saber próprio, e conceitos que germinaram na filosofia moderna. O conceito fundamental da Renascença era o da semelhança. As ciências e disciplinas diversas, pensam o todo vivente articulado e relacionado em todas as formas variadas de ações humanas (das coisas aos homens, dos homens a Deus). Surgem academias livres que se interessam pela elaboração de conhecimentos sem vínculos diretos com a teologia e a religião. Os homens operam segundo princípios naturais e não por decretos divinos. A crença no conhecimento racional como meio de transformação e desenvolvimento das técnicas, atendem as exigências intelectuais e econômicas da época. Passa-se da visão teocêntrica para a humanista. Emerge uma época de grande racionalismo. A razão se estabelece como faculdade plena de conhecimentos, "sem aceitar dogmas religiosos, preconceitos sociais, censuras políticas e os dados imediatos fornecidos pelos sentidos" (CHAUÍ, 1986, p. 80). O homem passa a afigurar como centro do saber, da moral e da política. É "[...] a proclamação inicial da igualdade de todos os homens pela razão e o propósito de melhorar a condição humana através da ciência" (RODIS-LEWIS, prefácio de HUISMAN, 1981, p. 1). A idade moderna rompe com os dogmas religiosos para insuflar no homem o conhecimento de si e do mundo sobre a visão do racionalismo científico. É com este racionalismo que se constrói um novo projeto de totalidade. O iniciador do pensamento moderno foi Descartes, que originou a destruição do autoritarismo medieval fundando a ciência moderna e tornando-se o pai do racionalismo do século XVIII e do espírito científico (materialismo) do século XIX. Para Descartes o dualismo que opunha a alma ao corpo, como substâncias diferentes, era insustentável (tese que Descartes defendia apenas em teoria, porque na verdade ele acentuou este dualismo no pensamento moderno). Cria na concepção do espírito humano como atividade espontânea e livre, caracterizado na vontade por esta ser infinita. O pensamento é uma conquista da vontade contra as paixões da alma, em moral (a moral, para Descartes, se ajustava mal ao sistema racional e científico, porque não se reduz em idéias claras e distintas). A moral rejeita as noções falsas e fixa as idéias verdadeiras. As paixões eram fenômenos atinentes à união substancial da alma e do corpo, constituindo um plano de idéias confusas. Distinguia a diferença entre a alma e o corpo como substâncias diferentes. Mas há um momento, para ele, em que ocorre a união substancial entre os dois, resultando em noções falsas (paixões), que implicavam sobre a moral determinada pela ordem social. O que interessava principalmente à Moral de Descartes era a doutrina da alma e do corpo na natureza humana. A união que significava a mistura confusa das duas substâncias, conferia ao homem o caráter de receber impressões agradáveis e desagradáveis de outros corpos (misturas). A era moderna foi prodigiosa em seu avanço científico e industrial. O caráter místico do mal e do bem sobre o homem foram eliminados, e passou-se a pensá-lo como uma máquina. "Tanto o corpo como os organismos animais são máquinas e, portanto, funcionam com base em princípios mecânicos que regulam seus movimentos e suas relações" (REALI, 1990, p. 379). O mecanismo toma forma como momento de alienação. Condicionado aos reflexos do capitalismo emergente, o homem é tomado como instrumento. Lhe é outorgado o cargo de operador eficiente, que desse conta de manter as linhas de produção no regime operacionalizado das máquinas, que ofereciam e geravam riquezas e poder para controlar seus movimentos e relações: era o patrão que ordenava o salário, os dias de trabalho, a hora de entrada e saída, a escola que devia matricular seus filhos, quando devia casar-se, quando poderia ir à igreja, quando poderia jogar futebol, etc., ao invés de seus próprios eventos biológicos que lhe conferiam uma noção de inferioridade de produção em relação a máquina. A sabedoria moderna consistia "precisamente na adoção do pensamento claro e distinto como norma, tanto do pensar como do viver" (ídem, p. 388). Pensar o portador de deficiência com suas estruturas biológicas disformes ao normal, que dava a este o ritmo, a agilidade, a força para suportar a engenharia industrial e sobreviver dentro das normas do capital; para aquele que possuía a disfuncionalidade das suas ações motoras e cognitivas, a recusa dos seus préstimos para o trabalho era evidente, pois era improdutivo para o sistema. Descartes fundamentava a exclusão do portador de deficiência do trabalho (sem este ele não poderia sobreviver) da seguinte maneira: a alma na mistura, no conjunto, sentia as necessidades do corpo. Portanto, a alma numa mistura com um corpo defeituoso estaria sujeita às percepções de improdutividade das ações de seu corpo. Este afetaria a clareza de suas idéias, dirigindo o homem para um estado de inferioridade. O que regia a sua exclusão do meio social, como o pensamento mais sensato a se tomar. 3.4 IDADE CONTEMPORÂNEA Este momento histórico que ainda está se constituindo, não nos permite, ainda, traçar os seus pontos gerais e marcantes de discussão. O que é possível de se assinalar, são as principais questões, temas analisados e repensados neste período em que vivemos. Um tema amplamente discutido é sobre a corporeidade do homem que perpassou por vários significados: significou o elemento de privação de suas magnitudes intelectuais (que tinham por essência uma origem divina); significou instrumentalidade, a mecanização e decodificação de seu corpo por leis da mecânica capitalista; hoje empreende a construção de um corpo não como símbolo de uma hierarquia (corpo-mente, superior-inferior), mas como corpo-homem. Unidade global de toda a sua estrutura, vivência de experiências e aprendizagens. Compreender o homem sobre esta face, é o grande discurso que os intelectuais se empreendem neste limite do tempo. Analisando os períodos que antecederam a contemporaneidade, verificamos as causas da marginalização do corpo, que tiveram como ponto de partida o projeto de totalidade de suas sociedades. Dominando e criando um determinado saber, um micro-poder promulgava a evolução e estruturação daquelas sociedades, arranjando os seus indivíduos dentro de uma determinada ordem. Impregnaram uma divisão do trabalho de forma acentuada e brusca, para diminuir a espontaneidade e a expressividade corporal, tornando-a instrumento, mediação para a concretização do projeto de mundo. Neste processo de civilização, o homem sofreu a ação de descorporalização. A linguagem corporal foi reprimida - para não transparecer as desigualdades provocadas pela totalidade e para que não insufla-se no povo o desejo de libertação, de negação do seu projeto - detendo-a em padrões e normalizações de expressão. Com o racionalismo e a industrialização que instrumentalizaram o movimento para o desenvolvimento da produção, dois poderes passaram a agir sobre o corpo: um que diminuía a comunicação e lhe acarretava formas específicas de comportar-se; e outro que aperfeiçoava as suas habilidades prolongando a sua vida operária. Desta forma, o modelo da ação humana era o corpo-instrumento, voltado para a produtividade. Manipulando a ação humana, o corpo transforma-se numa mercadoria, parte integrante dos bens da empresa, que destitui o trabalho do sujeito operário para canalizar a sua ação na construção de valores patrimoniais. Com estes conteúdos históricos, os pensadores contemporâneos, dedicam-se em esclarecer os enigma do homem e do ser. Olhar a problemática dentro de "uma visão do corpo e do movimento integrados na totalidade humana" (GONÇALVES, 1994, p. 64). Fundamentar não as particularidades humanas, mas pensar o homem como um ser sensível e corpóreo, significar ele naquilo que é como distinto, rejeitando por um lado o objetivismo da ciência, e do outro, o idealismo filosófico. Pensar e compreender as P.P.Ds. como indivíduos, que empreendem funções de construções históricas, políticas, sociais, religiosas e econômicas em um novo projeto de totalidade, que os concebe como HOMENS, é o grande desafio que os arquitetos sociais enfrentam hoje. 4 A SOCIALIZAÇÃO NOS DESPORTOS ADAPTADOS Neste capítulo iniciaremos as discussões concernentes ao tema abordado, analisando sobre o prisma das categorias da Filosofia da Libertação, a problemática do conceito da socialização, investindo numa nova leitura e compreensão de como é colocado a prática dos esportes para as P.P.Ds. A palavra socialização pertence ao vocabulário da sociologia desde 1937, do manual de Sutherland e Woodward. Mas parece que resulta de uma má interpretação feita por Giddings na tradução para o inglês (socialization) da noção de Vergesellschaftung (ato de entrar em relação social, as-sociação), central na obra de Georg Simmel. "Atualmente, a noção de socialização tornou-se um rótulo facilmente empregado" (BOUDON, 1993, p. 517). A partir dos anos 70, é que "os processos de socialização foram julgados dignos de atenção principalmente porque pareciam fornecer a chave da permanência das classes e, de modo mais amplo, das diferenciações sociais" (ídem, p. 517). Vamos agora, analisar o conceito de socialização estudado por FORACCHI (1978), BOUDON (1993) e CHINOY (1967). Para CHINOY (1967) a instituição (um núcleo representativo do poder dominante) é um padrão de controle, uma programação da conduta individual imposta pela sociedade. Que condutas devem ser programadas pela sociedade?; a conduta do andar é motivo de regulação? As P.P.Ds. físicas têm que usar determinados aparelhos para se locomoverem. Só que estes aparelhos e o modo de andar destas, não fazem parte do universo das pessoas andantes. No entanto, as instituições esclarecem que a brutalidade da aparência dos seus movimentos de andar devem ao máximo serem camuflados, para que não sejam notados e rejeitados pelo coletivo, ou na pior das hipóteses, ficarem escondidas em suas casas. Em sua exterioridade, o seu andar estabelece um conflito, pois não é outorgado, declarado. É exterior aos enfeites do mundo. Mas é na sua exterioridade que ele se concretiza, se pronúncia. Não é a diferença comum - se compramos duas maçãs, compramos maçãs, mas uma não é igual à outra, são distintas - mas é a diferença que nega a convergência do sistema, da totalidade dominante, que simula construir a distinção e não a diferença (o outro). As classificações e conceitos são significados construídos pela linguagem e que só por meio dela podem permanecer atuantes. [...] a linguagem muito cedo envolve a criança nas seus aspectos macrossociais. No estágio inicial da existência, a linguagem aponta as realidades mais extensas, que se situam além do microcosmos das experiências imediatadas do indivíduo. É por meio da linguagem que a criança começa a tomar conhecimento dum vasto mundo situado ‘lá fora’, um mundo que lhe é transmitido pelos adultos que a cercam, mais vai muito além deles. (FORACCHI, 1978, p. 194). A linguagem estrutura o ambiente humano por meio da objetivação e por estabelecer relações significativas. É pela linguagem que os papéis desempenhados pelos diversos seres se estabilizam na experiência "- que constitui um passo decisivo no processo de socialização. A criança aprende a reconhecer os papéis como padrões repetitivos na conduta de outras pessoas" (ídem, p. 194). Esses papéis e padrões repetitivos não se inserem no microcosmo das P.P.Ds. Normalmente, estes padrões exigem, como pré-requisito, um nível de disseminação intelectual, artístico e físico, que são negados a esta classe, por sua condição dita de inferioridade, não é dado atingir. E aqueles que as atingem, são enaltecidos, glorificados como exceções da contra-raça, que receberam uma luz divina, uma permissão para incorporar um grupo social de nível mais elevado, tanto intelectual, moral, físico e principalmente financeiro. A sociedade estrutura e normatiza que os indivíduos assumam determinadas funções e papéis, par dar continuidade ao seu processo de vida. Sabemos que determinadas funções só são exercidas por determinadas parcelas da população. Mas nesta totalidade, qual é a função da P.P.D.? A linguagem concretiza a existência das P.P.Ds. (aleijado, mudo, cego, surdo, débil mental), assim como lhes acarretam estigmas e lhes dissociam da convivência social. Estes processos são exercidos pelas fantasias demoníacas da linguagem, que "[...] representa o mais poderoso instrumento de controle da sociedade sobre todos nós" (FORACCHI, 1978, p. 199). No microcosmos onde se desenvolvem as experiências das P.P.Ds., as experiências diferem de acordo com os macrocosmos em que se inserem. "O processo por meio do qual o indivíduo aprende a ser um membro da sociedade é designado pelo nome de socialização. [...] a socialização é a imposição de padrões sociais à conduta individual. [...] é um processo de configuração ou moldagem" (ídem, p. 204, 206). O indivíduo é configurado pela sociedade, é por ela moldado de forma a fazer dele um membro reconhecido e participante. Mas não é um processo unilateral. O indivíduo não é uma vítima passiva da socialização. "A socialização é um processo recíproco, visto que afeta não apenas o indivíduo socializado, mas também os socializantes" (ídem, p. 206). É necessário admitir que há limites para a socialização. Deve existir um potencial para se instaurar o processo de socialização. Deve ocorrer um processo de interação e identificação com os outros. É com este significado que se revela a importância da prática desportiva no ambiente social imediato; no processo da socialização. Outro termo empregado para definir socialização é a interiorização. "Esse termo significa que o mundo social, com sua multiplicidade de significados, passa a interiorizar-se na consciência do indivíduo" (ídem, p. 208). Interiorização de comandos e proibições de ordem moral vindos do exterior (postulados morais), que relaciona-se com o controle da conduta individual. É certo que, bem ou mal, se mantêm processos de socialização condizentes ao tipo específico de identidade que se harmonize com os ideais e as necessidades da sociedade. Existem dois tipos de socialização: uma primária e outra secundária. "A socialização primária é o processo por meio do qual o indivíduo se transforma num membro participante da sociedade. A socialização secundária compreende todos os processos posteriores, por meio dos quais o indivíduo é introduzido num mundo social específico" (FORACCHI, 1978, p. 213). Todos os processos de socialização se realizam numa interação face a face com outras pessoas. Em outras palavras, a socialização sempre envolve modificações no microcosmos do indivíduo. Ao mesmo tempo, a maior parte dos processos de socialização, tanto primária como secundária, liga o indivíduo às estruturas complexas do macrocosmos. As atitudes que o indivíduo aprende através da socialização geralmente se relacionam com sistemas amplos de significados e valores que se estendem muito além de sua situação imediatada. (ídem, p. 214). "Todo processo social põe em jogo sujeitos agentes. As ações desses sujeitos não podem em geral ser analisados se se abstraírem os processos de aprendizagem - de socialização - que foram submetidos" (BOUDON, 1993, p. 517). BOUDON (1993) evoca duas questões sobre a socialização: 1- "Qual é a representação mais adequada dos processos de socialização?" (BOUDON, 1993, p. 518). É ou não, um processo de condicionamento sobre o indivíduo, promovido pelo seu meio, para registrar e interiorizar respostas a determinadas situações e 2- "Qual é a parte dos efeitos de socialização na explicação dos fenômenos sociais?" (ídem, p. 518). A primeira questão possui o sentido de adestramento, interiorização de "normas, valores, atitudes, papéis, saberes e habilidades que comporão uma espécie de programa destinado a ser executado em seguida mais ou menos mecanicamente" (ídem, p. 518). O condicionamento pode se opor a interação, esta parece mais realista e flexível que o condicionamento. A interação vê a socialização como um processo adaptativo. "Em face de uma situação nova, o indivíduo é guiado por seus recursos cognitivos e pelas atitudes normativas resultantes do processo de socialização a que está exposto. Entretanto a situação nova o levará eventualmente a enriquecer seus recursos cognitivos ou a modificar suas atitudes normativas" (BOUDON, 1993, p. 519). A interação permite incluir a otimização. "[...] numa dada situação, um sujeito tenta ajustar seu comportamento ao melhor de suas preferências e de seus interesses tais como os concebe" (ídem, p. 519). Aqui os comportamentos mecânicos causados pelo condicionamento são excluídos em suas formas puras. A interação leva "em consideração o grau de interiorização das montagens normativas e cognitivas produzidas pela socialização" (ídem, p. 519). O tempo e as dificuldades de aprendizagem são diferentes. Ela permite "distinguir os elementos interiorizados em função de seu poder de coerção social. Certos valores ou normas têm interpretações e atrações diferentes para os indivíduos". Permite, também, a análise da ação. São "os dados microssociológicos responsáveis pelas semelhanças e diferenças observáveis no nível do agregado" (ídem, p. 521). A socialização na explicação dos fenômenos sociais consiste em que "os efeitos da socialização constituem apenas um dos parâmetros da ação. A noção de socialização secundária indica, além disso, que eles próprios podem ser submetidos com intensidade variável conforme o caso, a efeitos de retroação engendrados pela estrutura do campo de interação no qual o ator se acha imerso" (ídem, p. 522). Para CHINOY (1967), a socialização transforma a matéria-prima humana num ser social. Possui duas funções: "[...] prepara o indivíduo para os papéis que há desempenhar, fornecendo-lhe o repertório necessário de hábitos, crenças e valores, os padrões apropriados de reação emocional e modos de percepção, as habilidades e os conhecimentos requeridos. [...] transmite o conteúdo de uma geração a outra, provê à sua persistência e continuidade" (CHINOY, 1967, p. 120-121). Na primeira função se requer um indivíduo conceitual, pré-determinado a conquistar e concluir determinadas funções, que lhe acarretam a sua permanência num determinado ciclo instituído. A P.P.D. no início da sua familiarização com as normas sociais, é suprimida deste compromisso de permanência, por não atender os códigos de beleza e instrumentalidade. No segundo fator, como que a P.P.D. pode perpetuar a transmissão de determinados valores para prover a sua persistência e continuidade, se estes lhes é negado? Estas questões e outras só agora começam a serem estudadas, e que merecem no futuro uma melhor compreensão. A socialização dirige os impulsos biológicos para os canais culturalmente padronizados. A aprendizagem "consiste no desenvolvimento de hábitos que se conformam aos costumes da sociedade" (ídem, p. 124). O indivíduo adquire respostas embasadas num conjunto de valores de juízo do que é certo e do que é errado. Mas o que é certo ou errado para as P.P.Ds.? É certo ou errado locomover-se com muletas? É certo ou errado jogar basquete sobre cadeira de rodas? É certo ou errado jogar futebol com uma bola que chia? É certo ou errado ler um livro com as mãos? Neste processo, a família sozinha não pode adestrar a criança em papéis adultos. Aqui aparecem outras instituições: a escola e os meios de comunicação de massa. E é por intermédio da linguagem, de caráter obviamente social, o indivíduo recebe as idéias que adota como suas. A atitude que toma em relação ao próprio caráter - físico, psicológico e social - é significativamente afetada pelas atitudes dos outros. Se estes lhes aprovarem as ações ou a aparência, ou se lhe parecer que as aprovam, passa também a aprová-las e vice-versa. Coley chamou a essa auto-imagem o ‘eu ao espelho’, que, disse ele, ‘parece ter três elementos principais: a imaginação da nossa aparência como é vista por outra pessoa; e uma espécie de auto-sentimento, tal como o orgulho ou a mortificação. (ídem, p. 126). A linguagem é a construtora das condutas, idéias e atitudes do indivíduo. Mas qual é a significância desta construção para as P.P.Ds.? Será que a P.P.D. pode interiorizar a idéia de ser um executivo ou um atleta bem sucedido? "Uma rápida mudança social requer sempre novos padrões de comportamento e difíceis ajustamentos emocionais [...] Brancos que sempre julgaram os negros inferiores precisam aprender a aceitá-los como iguais, à proporção que se modificam os padrões de relações sociais" (CHINOY, 1967, p. 131). Isto acontece porque a sociedade e complexa e mutável. Como, utilizando-se do esporte, a sociedade deve entender a relação de proximidade, que encurta a distância e estabelece o face-a-face entre nós e as P.P.Ds.? Ela deve encurtar a distância numa práxis que compreende o ser (neutro), e abraçá-lo no amor a sua realidade desejante. Compreender que os homens são diferentes (distintos) uns dos outros, e que nessa diferença existe a dependência, porque o homem é corpo. E o corpo é um ser no mundo (um mundo compreendido num sistema de compreensão homem-homem e homem-objeto). A P.P.D. é diferente (distinta), mas é corpo. É o seu corpo que a declara como indivíduo, e é através da sua estrutura física não conforme que se denúncia a sua existência. E essa identidade física nos pertence também. Como identificamos que alguém se chama fulano ou ciclano? Por uma declaração jurídica formulada num papel. Por uma pequena parcela do nosso complemento corporal, o polegar, ou seja, a nossa impressão digital. O esporte assumiu a função de mediador (a mediação sempre se propõe ao atingimento de um projeto) para as P.P.Ds. alcançarem os objetivos finais da ação, a socialização. Declarados como uma classe periférica, a passagem de uma classe para outra classe se faz por meio da mediação. Na prática esportiva as P.P.Ds. têm que usar determinados aparelhos como mediadores. Estes aparelhos consistem, também, como acusadores das suas incapacidades. No mesmo momento em que propiciamos o acesso à prática esportiva, com as promessas de seus benefícios, carimbamos e afirmamos a sua imagem de não-igual. Os usamos, simplesmente, como produtos da cotidianidade de nossas práticas. Mas devemos usar a mediação como possibilidade para a liberdade. Na função de portador de deficiência, ele reage contra o sistema. Sua manifestação é dúvida da composição ordenativa. Na sua exterioridade é um não-ser, que não está condicionado ao sistema, não sendo é nada. E é do nada que aparecem os novos sistemas. O mal é a ignorância da realidade da multiplicidade. O diferente inculta perigo para a unidade. O bem é ser sempre mais um entre os outros. O diferente, o outro, o que é falso ao sistema, é legalmente aniquilado pelos braços, que são muitos, do bem. É bom lembrarmos que o diferente não o é, mas sim, distinto. "[...] negar o outro como outro é a alienação [...]. A alienação de um povo ou indivíduo singular é fazer-lhe perder seu ser ao incorporá-lo como momento, aspecto ou instrumento do ser de outro" (DUSSEL, 1977, p. 58). Dessa forma, o estabelecido deve ser descoberto, sua ação normalizadora descompassada deve ser compassada para uma nova ordem. Para termos condições de empunhar a práxis para a libertação, é necessário que sejamos ateus do sistema normalizador, e respeitar o outro como outro. Ou seja, respeitar o outro naquilo que é como distinto. "O respeito é a atitude metafísica como ponto de partida de toda a atividade na justiça [...]. É respeito por alguém, pela liberdade do outro" (ídem, p. 65). O respeito agride a disfuncionalidade do sistema. Nisso, o sistema persegue o clarividente e declara a necessidade de uma nova ordem. A destruição da ordem precisa ter sentido, e deve ocorrer de modo fecundo, afirmativo. Da sua destruição deve nascer o novo, o justo. Não deve significar apenas aniquilação em seu sentido negativo total, onde o novo não é novo, mas sim caos. Devemos adentrar na exterioridade insuspeitada, futura, nova da realidade. Revelar o homem definido como parte. A práxis da libertação é "um trabalho [...] que se realiza pelo outro na responsabilidade; para sua libertação. É a atividade inovadora do uso dos instrumentos que se põem a serviço do pobre. A práxis da libertação é a procriação mesma da nova ordem, de sua estrutura inédita, ao mesmo tempo que das funções e entes que o compõem. É a tarefa realizadora por excelência, criadora, inventora, inovadora" (DUSSEL, 1977, p. 69 e 70). O ethos (costume ou caráter) "da libertação, do libertador por excelência, é o modo habitual de não repetir o mesmo; ao contrário, trata-se da aptidão ou capacidade feita caráter de inovar, de criar o novo. Como emerge do eixo do outro [...], e o outro é sempre alguém concreto em nova posição de opressão e exterioridade, somente aquele que é responsável e fiel à sua novidade pode procriar e inventar o inédito" (ídem, p. 70). O eixo essencial do ethos da libertação "é a pulsão alterativa ou de justiça metafísica; é o amor ao outro como outro, como exterioridade; amor ao oprimido, mas não em sua situação de oprimido, e sim como sujeito de exterioridade" (ídem, p. 70). 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao sucintarmos a averiguação da problemática da socialização, da integração - ou outro termo que designa o comportamento de determinadas esferas sociais, que se intitulam por trabalho, esporte, política, religião, etc. - da P.P.D. através do esporte, onde a Educação Física vem agremiando como sua tarefa, que num primeiro momento confere ao processo uma imagem de satisfação, mas que num segundo momento, ao realizarmos uma leitura moldada na Filosofia da Libertação, que imprime e ressuscita uma nova compreensão dos trabalhos nominados como inovadores, ela revela a camuflagem do ideal de manutenção de um grupo dominante, que estabelece mecanismos conformistas e padrões de comportamentos, que expressam uma maneira sorrateira de alienar os indivíduos e perpetuar a vigência do seu projeto de mundo. Com o compromisso, que nos intitulamos com este trabalho, de esclarecer a desordem que se inculta nos discursos sobre a P.P.D. e o esporte, devemos salientar que não devemos ser ingênuos em transparecer que o estudo emite uma decisão final e concisa, mas que o estudo sobre o complexo das P.P.Ds. engloba a necessidade de um aprofundamento árduo, por esta classe compreender uma conformação de exterioridade muito difícil de se analisar. Assim, nos remetemos em apenas apontar determinados encaminhamentos que se fazem necessários apartir deste momento: 1° - Que a linguagem, utilizada para materializar as nossas ações e os nossos pensamentos, que se articulam com as P.P.Ds., remodelando novos trocadilhos como por exemplo: Educação Física Especial ou Adaptada, pessoa portadora de deficiência ou de necessidades especiais, desporto adaptado, etc., se apresentam insuficientes, inadequados e imprecisos em seus conteúdos; 2° - Que é como minoria e classe estigmatizada, que as P.P.Ds. devem se entender, para apartir deste entendimento, como classe que nega uma determinada totalidade, pronúnciar ela própria os seus trabalhos de libertação; 3° - Que a sociedade, o grupo dominante ao perceber um movimento de insurreição e transformação do projeto de totalidade, se articula em absorver este movimento, nutrindo-o de falsos pareceres e acomodando-os em suas estruturas, as quais reclamavam a sua apreensão. Dessa forma, deixamos claro que o montante do estudo sobre as P.P.Ds. não se faz representar por este trabalho. Mas queremos deixar aqui, uma centelha de luz para propagar a investigação das ações da Educação Física sobre as P.P.Ds. 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAGNANO, N.. História de la filosofia. Barcelona: 1995. v. 1, p. 47-55, 63-96, 103-137. AMARAL, L.A.. Pensar a diferença/deficiência. Brasília, 1994. p. 14. AMEAL, J.. São Tomás de Aquino: iniciação ao estudo da sua figura e da sua obra. Porto: Tavares Martins, 1961. p. 373-397, 423-448. ARANHA, M.L.A.; MARTINS, M.H.P.. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1991. p. 342-349. BOUDON, R.; BOURRICAUD, F.. Dicionário crítico de sociologia. São Paulo: Ática, 1993, p. 516-522. CORBISIER, R.. Introdução à filosofia: filosofia grega. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 104-124, 139-182, 198-226. CHAUÍ, M.S.. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1994. p. 49-55. ----------. 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