Repensando o Projeto Político–Pedagógico da Escola Pública:
emancipador ou educação por excelência?

Maria Madselva Feiges


Emancipador. É obvio! É óbvio porque, ao falar em Escola Pública, há uma referência implícita ao conceito, ou porque já se descobriu que o óbvio não é fácil e que exige superação da ideologia burguesa e do senso comum.

A simples constatação da realidade muito pouco ou quase nada acrescenta à compreensão das complexas relações sociais. Uma forma privilegiada de pensar o mundo é o entendimento dessas complexas relações.

Pensar que o Projeto Político–Pedagógico é emancipador porque é um projeto da escola pública que atende a população majoritária é reduzi-lo às mesmas dimensões de um projeto de educação por excelência.

A elite brasileira tem, com certeza, um projeto de educação por excelência para as camadas trabalhadoras.

Em contrapartida, a escola pública pensa o seu projeto de educação a partir dos determinantes e das possibilidades histórico-sociais da construção de um projeto politicamente favorável à qualidade do ensino e da aprendizagem das camadas populares.

Existe assim, uma obviedade na abordagem dos dois projetos. Ambos reconhecem a necessidade da qualidade do ensino e da aprendizagem.

Qualidade para quem? Para quê? Por quê?

Qualidade a serviço de quem?

É preciso explicitar esse conceito à luz da finalidade dos dois projetos.

Reapropriar-se da clareza filosófico–científica, ética e técnica do conceito "qualidade da educação" é tomar como critério de criticidade a análise dos condicionantes econômico-culturais e sociais que constituem objetivamente a realidade social.

Empenhar-se na construção coletiva de um Projeto Político–Pedagógico de Qualidade, politicamente definido em favor das necessidades das camadas populares significa conceber a escola do ponto de vista da educação, enquanto direito social.

Neste sentido, a função social da escola revela sua dimensão política na perspectiva de construir coletivamente a qualidade do ensino e da aprendizagem pela via de um Projeto Político – Pedagógico autônomo e democrático.

Enquanto a aquisição da herança cultural – organizada na forma de currículo – se constitui em objeto de apropriação por parte das novas gerações, a gestão desses processos educativos se articula ao papel que a escola representa na unidade conhecimento – poder para usar esse papel na formação de cidadãos críticos e ativos.

A qualidade do ensino-aprendizagem decorrente deste Projeto possibilita o desenvolvimento de uma nova forma de pensar / falar / agir que não permite ao poder se ocultar em lugar algum, mas que se explicita nas relações entre sujeitos e os objetos de apropriação (bens materiais e culturais) como uma possibilidade real de construção da dignidade do cidadão.

E qual é a obviedade presente na construção de um projeto de educação por excelência? A centralidade, a diretriz norteadora deste projeto é a lógica de mercado.

Para os neoliberais, como afirma Moreira, "o bom funcionamento do mercado livre e competitivo maximiza e eficiência econômica e , ao mesmo tempo, promove a liberdade individual e solidariedade social" (MOREIRA, 1995, p. 96), guiando desta forma as atividades humanas.

Assim, os indivíduos são livres para as atividades econômicas, mas controlados para os propósitos culturais e sociais. Para tanto, afirma em discurso, o Presidente da República, que para um ensino de boa qualidade, impõe-se um currículo que unifique as matérias a serem ensinadas obrigatoriamente por cada escola em todos os Estados.

O Projeto de Educação por excelência defende um modelo de educação, fundamentado em:

    1. Qualidade total: a gestão da qualidade total trouxe benefícios inegáveis à empresa. Em uma sociedade onde a educação é tratada como privilégio e não como compromisso social, a qualidade total reforça e amplia os privilégios e desigualdades.
    2. Ênfase nos aspectos emocionais: a qualidade tem ligações íntimas com o sujeito em seu cotidiano. Para consolidar este aspecto, Sandrini discute a concepção de que o importante é a pessoa sentir-se bem. Não basta o pão. É preciso pão e beleza. Educar é ajudar as pessoas a curtir a vida a partir do aqui e do agora.
    3. Equanimidade – consiste no reconhecimento de cada um ter o que é preciso para desenvolver o que é. "Cada um vai conquistar o que é justo para si, que não é igual ao que é justo para outro" (SANDRINI, 1994, P.36). Defende a subjetividade que naturalmente desemboca no individualismo.
    4. Terceirização: em educação significa a busca de parcerias, de reciprocidade e de complementariedade. O dever do Estado de assegurar a escolaridade básica a todas não significa que ele pode e deve fazer tudo. A participação, a ação conjunta da família, de grupo organizados da sociedade civil, de empresas, de professores revelam-se como novos parceiros. É preciso romper com a dicotomia público – privado, no sentido de facilitar as parcerias e o compromisso com a educação básica.
    5. Revolução tecnológica – o trabalho escolar precisa apropriar-se das novas tecnologias para apresentar maior eficiência. O discurso da qualidade de ensino incorpora a novas tecnologias: TV, TV a cabo, computador, INTERNET e que, muitas vezes, reduz o ensino à atividade produtiva.

    A construção de um Projeto de Educação por excelência, assentado em tais princípios significa atrelar a escola ao mercado de trabalho, renunciar a sua função precípua de formação integral do homem.

    Essa concepção de gestão do trabalho pedagógico apresenta na sua aparência os elementos reveladores da modernidade: globalidade, inteligência emocional, qualidade total, competitividade parceria e outros, que na realidade, esconde a acirrada excludência, através do desenvolvimento tecnológico, da formação de trabalhadores que pressupostamente vão integrar o mercado formal de trabalho.

    A busca incessante pela articulação plena da escola à sociedade pode ser esclarecida pela ótica de Paulo Freire quando afirma "Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto e aquilo. Não posso ser professor a favor de quem quer que seja e a favor de não importa o quê. Não posso ser professor a favor simplesmente do Homem ou da Humanidade, frase de uma vaguidade demasiado contrastante com a concretude da prática educativa. Sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda. Sou professor a favor da lista constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais. Sou professor contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: a miséria na fartura. Sou professor a favor da esperança que me anima apesar de tudo." (FREIRE, 1996, p.115)

    Neste sentido a construção coletiva do Projeto Político–Pedagógico da Escola Pública cumpre sua função emancipadora, na perspectiva de Saviani, de que este projeto força "a noção de que o papel político da educação cumpre-se na perspectiva dos interesses dos dominados, quando garante aos trabalhadores o acesso ao saber, ao saber sistematizado." (SAVIANI, 1992, p.76).

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    BIBLIOGRAFIA:

    SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico – crítica: primeiras aproximações. 3ª ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1992.

    FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

    MOREIRA, Antonio Flávio. "Neoliberalismo, Currículo Nacional e Avaliação". In: Reestruturação Curricular: teoria e prática no cotidiano da escola. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

    GENTILI, Pablo (org.). Pedagogia da Exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

    SANDRINI, Marcos. "Paradigmas de Qualidade". In: Revista da AEC nº 92, Brasília, DF: 1994.