LESTE EUROPEU E ENFRENTAMENTO DE TOTALIDADES Ricardo Timm de Souza (Freiburg i. B. Alemanha) (Fev./91) 1-INTRODUÇäO Na massa dinâmica de fatos empíricos - mais ou menos conscientes, mais ou menos valorizados - que constitui o decorrer da história, tudo deve se oferecer a uma reflexäo mais profunda do que o entusiasmo puro e simples do acontecer. E isto para que näo se tome o mais próximo pelo mais consistente, ou o mais aparente pelo mais efetivo. `A filosofia tem sido sempre confiada esta tarefa ingrata de tentar ultrapassar os limites óbvios de um fato para se chegar às suas raízes menos óbvias mas mais importantes e profundas; raízes estas menos credoras, muitas vezes, de confianças exageradas em qualquer tipo de otimismo historicista, porém mais próximas da possibilidade de avanços reais para além de arroubos entusiasmados. Se pensarmos, de outra parte, que nossa posiçäo excêntrica em referência aos pólos maiores de hegemonia econômica-ideológica-política em termos mundiais - nossa näo condiçäo de "Primeiro Mundo" - pode servir näo para nos alijar das possibilidades de uma reflexäo profícua, e sim para nos fornecer uma procedência hermenêutica perfeitamente coerente e válida, desde um viés interpretativo até mesmo menos "viciado" de tradiçöes a resguardar e mais aberto a reais novidades; se concebermos seriamente o nosso juízo como näo destituído de valor mesmo para as grandes linhas da história contemporânea, em sua grandiosidade colorida e sem precedentes - teremos um ponto de partida sólido para o estabelecimento de uma avaliacäo equilibrada de uma quantidade de dados aparentemente por demais poderosos para se inclinarem, ainda que a um nível de reflexäo estrita, a outra lógica que näo a sua. Podemos portanto, nestas condiçöes, assumir como também nossa a tarefa de mergulhar ao fundo da movimentaçäo contemporânea, recentíssima, que tanto tem emocionado e desconcertado espíritos como tem tumultuado teorias e confrontado abruptamente realidades diversas, näo deixando também de ser apresentada como uma remissäo da história ou o advento de toda uma escatologia profana: a "abertura " dos países do Leste Europeu. Mas a tarefa da filosofia näo é coligir dados ou fotografar consciências, e sim analisar o que se dispöe e sintetizar tudo em um conjunto coerente de explicaçöes e novas indagaçöes. E tudo isto deve ser executado, a bem da coerência, desde um ponto de vista estritamente teórico, categorial - para que a simples seduçäo do movimento em si dos fatos näo carreie para um universo artificial ou ideológico o fruto de nossos esforços. Propomo-nos, portanto, neste texto, a seguir uma linha precipuamente filosófica de interpretaçäo destes fatos täo importantes. Isto será feito desde um fulcro situado "transversalmente" em relaçäo à centralidade efetiva desta "aldeia global", e a partir de categorias amplas cuja consistência tem sido, em nosso entender, mais e mais alimentada pela mesma história à qual costumam se dirigir incisivamente. 2-Uma categoria interpretativa privilegiada: a Totalidade. "Totalidade significa equiparar o diferente ao inimigo" (Theodor W. Adorno) A categoria de "Totalidade", já antiga na história da filosofia e levada por Hegel a un nível de extraordinário acabamento, servirá de eixo condutor para nossas reflexöes. Mas näo se trata, aqui, de nenhuma das concepçöes clássicas de Totalidade como tais, especulativamente já täo bem ventiladas. Constitui-se esta categoria neste momento, para nós, em um modelo de trofismo de tudo o que detém a possibilidade de conduçäo de seu próprio desenvolvimento: sua totalizaçäo, acabamento em si. Trata-se de um conceito de Totalidade menos elegante que os usualmente encontrados nos sistemas filosóficos, porém mais efetivo: näo se reduz a palavras. É a vontade de poder que se consubstancia propriamente no exercício real de poder e também com o comprazer-se pelo poderio alcançado. Tudo isto em uma configuraçäo característicamente avessa a qualquer sançäo ou crítica que näo se encontre em si mesma: sua tautologizaçäo é sua vida; e sua vida é sua legitimaçäo absoluta. Em outros termos, Totalidade é aqui o exercício efetivo da dinâmica de imanência em seu desdobrar-se - conquista mesma da imanência em si, por si e para si(1). É a síntese realizativa de todas as energias integradoras do diferente de si: incorporaçäo de tudo na coesäo concêntrica que a tudo integra desde um fulcro energético absolutamente preponderante e tautológico em sua origem, finalidade e destino(2). Uma vez caracterizada a essência estritamente teórica que este termos assume aqui, pode ser tentada uma transposiçäo hermenêutica para o mundo prático. Em verdade, uma certa flexibilidade intelectual poderá nos mostrar, na grande história universal, a tendência pertinaz que possuem os grandes modelos culturais hegemônicos de se alimentarem do que näo é eles mesmos. Os grandes impérios mundiais nunca fizeram mais, a rigor, do que incorporarem a si o que em princípio a si näo se reduz e näo se poderia reduzir - exportando este mode- lo lógico de compreensäo da realidade de tal forma que nos soa no mínimo exótico um parecer crítico a este procedimento täo óbvio e clássico. Os mais fortes e vencedores preponderam e se reservam o sagrado direito de definir efetivamente a sua Verdade, sua Justiça, seu Bem - dos quais sua Lei e sua Ordem (e as de seus lacaios) constituem o posto avançado. Eles crescem e se impöe, com violência aberta ou disfarçada, sobre tudo o que, em lhes sendo diferente, näo lhes é indiferente. Esta é sua lógica real, sua verdade; e sua Verdade é sua Totalidade. Totalidade näo é, portanto, algum conceito abstruso incubado em alguma torre de marfim filosófica. É, isto sim, o resultado do acoplar-se ao decorrer do tempo da vontade de poder em realizaçäo - a lógica efetiva de desenvolvimento de todo o crescimento ocidental e de tudo o que toma como modelo ideal em suas infinitamente multiplicadas dinâmicas. Está, enquanto processo em curso e idéia "reguladora", nos fundamentos, ou seja da acumulaçäo de poder e dinheiro, seja na depredaçäo da natureza, seja na sofisticaçäo crescente das armas da morte; mas está, também, no mais disfarçado dos extermínios culturais. Justifica tudo: a guerra, a fome, a miséria; mas, acima de tudo, justifica a si mesma e a si mesma se afirma como boa: vive. 3.Um modelo de Totalidade e sua ruptura. Negar-se-ia ao modelo corrente de projeto político dos países do leste europeu a condiçäo de Totalidade em desenvolvimento? Näo se dá em sua raiz burocratizada, con-centrada em sua intolerância- há muito desviado das originais motivaçöes éticas que teriam alimentado seus primeiros teóricos - justamente o que se está tentando caracterizar como modelo de Totalidade? Os fatos falam por si. Os regimes mais ou menos ditatoriais, mais ou menos centralizados em sua rigidez afirmativa, característicos dos países adstritos ao Pacto de Varsóvia, configuram claramente um modelo de trofismo afirmativamente totalitário, no contexto em que se situam. Se o grau de patologia de um modelo político é dado pelo número de presos políticos, polícias secretas e instrumentos de censura-tortura presentes ou passados que possuem, tais países - e o que os sustentava - já iam avançadíssimos em suas enfermidades. O mundo exigia sua transformaçäo terapêutica, a implosäo de seu sistema arcaico de desenvolvimento. Dentro e fora de suas fronteiras políticas e ideológicas, sua substância totalizada periclitava. E eis que a Totalidade se rompe. Näo resistiu, felizmente, à sua própria anquilose. Sua economia, combalida, näo sustenta sua violência interna(3). Ditaduras desmoronam, e ao ruído da queda do Muro de Berlim soma-se o brado de triunfo(4) que aquí e acolá ressoa. Uma Totalidade faliu, um modelo ruiu, as mazelas se mostram, povos podem chorar sua dor e seu sangue, abrem-se as prisöes. A alegria é grande: uma Totalidade näo se sustentou. 4-Uma leitura mais profunda dos fatos:Totalidade versus Totalidade Mas à contagiante alegria dos fatos que correm mais céleres que a reflexäo deve seguir, como dissemos, uma leitura acurada dos elementos mais profundos destes fatos. Esta é uma das tarefas da filosofia, e näo das menos difíceis ou ingratas. Assim, propomos aqui uma espécie de paradoxo por hipótese para esta reflexäo: para nós, a Totalidade do leste ruiu por näo ter sabido ou podido ser suficientemente violenta. Näo soube crescer com a velocidade e solidez necessárias. Deixou-se minar por um modelo de Totalidade mais dinâmico e abrangente, bem como mais sutilmente violento. Entregou os pontos a uma macro- estrutura täo ampla como flexível, täo complexa em seus componentes como unitária em seu telos de acumulaçäo de dinheiro e força: as ideologias ocidentais mais poderosas e definidoras da ordem mundial, com a pax americana à testa. Pois näo é este um modelo mais perfeito de Totalidade? Qualquer que analise pode perceber a violência inaudita de seu trofismo, sua capacidade de alimentar com o sangue e a miséria absoluta de milhöes de pessoas o fabrico de armas e futilidades; sua refinada habilidade em espraiar seus tentáculos por toda a orbe e sua democracia täo apregoada que só pode valer para os poderosos(5). Este é o modelo vencedor, em que o Mesmo se alimenta contínua e crescentemente do que lhe é diferente, e que, como foi dito, apenas de si pretende necessitar para se legitimar. Sob a aparência das luzes sempre renovadas, a mais perfeita das tautologias. 5- Conclusöes. "...l`on est obligé d`enoncer contre Parmenide que le non-être est..." (E. Levinas) A inconsciência ou determinaçäo de reduçäo do diferente a alimento do mesmo - do näo-ser como alimento do Ser totalizado - tem sido, ao longo da história, a única regra efetiva de desenvolvimento de culturas e impérios. Um mesmo modelo de totalizaçäo subjaz aos mais diversos conteúdos ideológicos, sociais, históricos. Ocorre por vezes transposiçöes de precedência de uns a outros; o que näo tem ocorrido é a substituiçäo deste modelo totalitário violento e todo poderoso por outro mais condizente com a dignidade do mundo e dos seres humanos. A falência dos modelos do leste europeu näo significa mais do que a substituiçäo de um modelo de Totalidade por outro mais efetivo e complexo, e que desde nossa situaçäo excêntrica aparece com suficiente clareza. Os elementos realmente determinantes - delineadores - destes dois modelos säo incomodamente congruentes: um só espírito anima, pelo menos na aproximaçäo que sofre suas consequências - o que sobra de sua lógica implacável. Enquanto permanecer sendo postulado para a humanidade como um todo o ideal de transformaçäo do mundo em um imenso juízo analítico - para além das críticas e des-legitimaçöes externas - as alegrias globais seräo sempre excessivamente efêmeras, e a morte de inocentes se encarregará de evidenciar a essência grotesca que carregam. NOTAS 1-"La totalité est le résultat de la totalisation, oeuvre de la Raison e du Même que devoilent, approprient et rangent toute exteriorité, tout transcendant, même la Méthaphisique, selon un ordre, dans un système, dans un unité; cette ouevre d`appropriation progressive, mais inélutable dans l`ontologie, est l`oeuvre même de l`imanence. La totalité est l`imanence achevée: tous dans le tout, tous dans lÚn, la multiplicité dans l`unité originelle ou finale"(PIVATTO,P. La relation a la transcendance dans l`ouevre d`Emmanuel Levinas, 199-200- Tese Inédita). 2-"El àmbito de la totalidad totalizada es de `siempre lo mismo'; esto es, lo conocido y seguro. La dialéctica opresiva de `lo Mismo' gira enriquecida sobre su propio eje, sin posibilidad de experimentar novedad alguna. La tensión entre pasado, presente y futuro desaparece. La expectatión de lo nuevo se torna sin sentido y termina por verse como algo amenazante" (ARDILES,Osvaldo. Descripción fenomenológica- Córdoba, Sils Maria, 1987, p.53). 3-Naturalmente, está é uma simplificaçäo; pretendemos apenas ressaltar algumas linhas gerais do processo. 4-Teria sido o assassinato dos jesuítas, ocorrido pouco tempo depois, parte destas comemoraçöes ? 5-Para evitar a suspeita, em nossas análises, de mero sectarismo político, solicitamos seja manuseada qualquer estatística, das täo divulgadas, do tipo das que dizem, por exemplo, quantos hospitais ou escolas poderiam ser construídas pelo preço de apenas um helicóptero de combate. A realidade que aqui queremos sugerir está além de qualquer passionalismo político ou ideológico.