VIAGEM PARA O CÉU?

Eduardo Oliveira *



RESUMO

Este artigo trata sobre o projeto de formação de professores do Estado do Paraná, localizado no município de Faxinal do Céu cujo nome é Universidade do Professor. Está localizado no interior do Estado e conta com uma infra-estrutura invejável. Criado em 1995 pelo Governo do Paraná, a Universidade do Professor tem como primeiro objetivo oficial "promover a atualização contínua e qualificação teórico-prática do pessoal ligado à educação, em todos os níveis e esferas do ensino"(1). O que se discute neste artigo é se realmente os seminários de formação e atualização de professores concorrem para este fim.

As metáforas utilizadas no texto como CÉU, Papa, querubins, anjos e serafins são inspiradas no nome da cidade do professor: FAXINAL DO CÉU, que tem uma paisagem bucólica e faz lembrar as descrições mais tradicionais do paraíso.

O artigo, em tom irônico, é a visão de um professor da rede estadual do Paraná, que tendo visitado o programa resolveu descrever como foi sua semana em Faxinal do Céu e quais as reflexões que pôde efetuar na oportunidade.




É noite de Domingo. Faz frio. Mas o gélido vento e o tilintar dos dentes não escondem a ansiedade de todos... Esta noite viajaremos para o Céu? Sim, somos quase 1000 professores em todo o Estado a caminho de Faxinal do Céu(2).

Retirantes de longínquas terras, profissionais de várias áreas, somos um grande misto interdisciplinar sedentos de cultura e desejosos de encontrar, seja onde for, um motivo a mais para ter esperança. Apesar dos diagnósticos aterrorizadores da educação no Brasil e em nosso Estado, apesar da falta de condições de trabalho, de falta de uma política educacional que atenda às necessidades dos milhões de crianças, jovens e adolescentes, apesar da violência, dos desmandos autoritários de professores em sala de aula e ditadores sentados em gabinetes, vamos todos procurar motivação – motivos para se ter esperança. Haveria lugar melhor do que o Céu para se buscar esperança?

A carruagem de fogo dos profetas chegou a um CÉU(3) coberto de nuvens. Visão paradisíaca e misteriosa. Alguns, é verdade, chegaram a pressentir um certo cheiro de enxofre. O certo, entretanto, é que não havia anjos barrocos brincando de inocência nas nuvens de Faxinal...

A primeira impressão dos retirantes para Faxinal, não sei se aquele lugar era o Céu, mas certamente o refeitório era a imagem do "paraíso". Na mesa, diante dos profissionais da educação havia leite, café, sucos, diversas qualidades de pão, frutas, guloseimas, presuntados, queijos etc., que se não alimentavam o espírito, ao menos o estômago dos retirantes da esperança: esperança de que aquela semana seria farta e agradável...

Logo conhecemos a equipe de querubins e serafins. Apresentam-nos como nossos servidores, mas o tempo nos mostrará que são os "olhos de Deus" que a tudo cria e tudo controla.

Nossos recantos no CÉU, chalés de estilo americano, são circundados por um manso regato de cachoeiras murmurantes, recheados por um verdejante bosque, encantado pelo canto dos pássaros – que tecem melodias indiferentes à orquestra preparada para os professores, representantes do mundo humano neste vasto "Reino de Deus".

Para conquistar o lugar definitivo no CÉU é preciso ouvir os "papas", pessoas de "outro mundo" (diferentes do mundo dos professores) que vão perfilando ante os olhos e ouvidos atentos dos professores conhecimentos empacotados, pastilhas de cultura, concentrados de intelectualidade. Qual não foi a minha surpresa ao perceber que também no CÉU há uma indústria de fabricação pasteurizada de conhecimentos!...

As longas palestras proferidas pelos "papas" do conhecimento, em muitos momentos, lembrava os filmes de Spellbert: abusava-se dos efeitos especiais. Recursos de som e luz davam conteúdo ao vazio das palavras e raciocínios dos papas do "show business". Uma dessas palestras vale a pena comentar.


O ARTISTA E O PALHAÇO

Seu tema era: COSMOLOGIA: O SER E O UNIVERSO. Era manhã de quinta-feira, e víamos, talvez, o mais talentoso dos "papas" da reciclagem.

Lembrando outros deuses, das terras dos tupiniquins, o papa tinha seus poderes persuasivos ampliados pela mesa de mixagem do anfiteatro Rubens Corrêa. Sua gesticulação e seu corpo atarracado, pequenino, lembrava as manobras dos bufões de corte que se desdobravam afim de arrancar, ao menos, um esboço de sorriso do rei...

O artista, em 1 hora, falou apenas e tão somente em três constelações estelares: Escorpião, Leão e Órius. Suas informações eram tão pasteurizadas, tangiam tão somente o mais superficial das águas dos fundos oceanos do conhecimento, que toda aquela gesticulação teatral e aqueles recursos infantis serviam apenas para divertir...

Mas o palhaço não era ele, o ARTISTA (claro, pois suas artimanhas lhe valiam cerca de R$2.800,00 por seminário concluído) mas nós, os professores. Palhaços a sorrir em um auditório repleto de adultos infantilizados, de profissionais idiotizados e hipnotizados pelas técnicas do artista. Os gritos e aplausos ao final da palestra lembrava mesmo um espetáculo circense, onde quem se divertia, por trás das cortinas, nos bastidores do evento, certamente eram os sócios da Luna & Associados.


ENTRE O CÉU E O INFERNO

O curso de motivação para professores de FAXINAL DO CÉU apresenta quatro segmentos: SEGMENTO CONCEITUAL, DE INTEGRAÇÃO CULTURAL, CONSTRUÇÃO COLETIVA E QUALIDADE DE VIDA.

Esses segmentos articulam-se de maneira a ressaltar os seguintes princípios e eixos norteadores: Estética da Sensibilidade, Política da Igualdade e Ética da Identidade.

A Estética da Sensibilidade prima pela criação, pelo estímulo à curiosidade, pela invenção, pelo estreitamento das relações humanas, enquanto que a política da Igualdade articula-se com o eixo cidadania e direitos humanos. Nestes eixos encontra-se a formulação conceitual que dá base à sustentação social do projeto pedagógico-educacional utilizado na Universidade do Professor. O terceiro princípio/valor, a Ética da Identidade está voltado para a construção da identidade e autonomia dos indivíduos, da sua capacidade de formular juízos e fazer escolhas. Aqui está a formulação teórico-conceitual que sustenta os edifícios de FAXINAL DO CÉU.

Imaginarmos um Estado onde as escolas integrem em seus projetos político-pedagógicos estes três princípios de maneira a que as minorias sejam integradas, de modo que a diversidade seja respeitada e que a multiplicidade das vozes (e olhares!) sejam garantidos é pelo menos antever o grande Portal do Céu.

Estabelecer parâmetros para uma educação onde a criatividade seja estimulada, onde as relações pautem-se pelo respeito e integração às diferenças, onde os sujeitos envolvidos nas relações sejam autônomos, maduros, com condição de exercício da liberdade efetiva, é o que sonharam os pedagogos de todos as épocas, sejam jesuítas ou não. Efetivar um projeto que realmente mobilize recursos econômicos destinados à uma política da educação que prime por princípios humanos – Direitos Humanos e Cidadania, já é, de fato, um estado paradisíaco. Mobilizar 33 milhões de dólares/ano(4) num projeto como a UNIVERSIDADE DO PROFESSOR é empreitada para até Deus duvidar. Mas... atrevamo-nos a uma olhadela no interior do CÉU, mais além das estatísticas e imagens.


O PARADOXO DE FAXINAL DO CÉU

Depois das nuvens, sonhos e fantasias, encontramos sentados à mesa de controle o casal de sócios Eduardo Luna e Rosângela Péres Maitan, que desde 1995 são os responsáveis pela realização do curso de Motivação e Atualização para Professores em FAXINAL DO CÉU. Ele, colecionador de vários títulos acadêmicos e atuante no meio empresarial; ela, economista que há anos atua no setor de consultoria de empresas. Ambos, entretanto, têm direcionado seus esforços na adaptação das máximas empresariais para o ramo da educação. Como diz o próprio Luna: "Tudo é uma questão de adaptação". E continua: "Todo o modus operandi da reestruturação empresarial pode ser utilizado, com sucesso, no setor da educação"(5). Rosângela Maitan é a responsável pela implementação do programa de Qualidade Total na formação de professores do Estado do Paraná.

Quando a educação é tratada como um negócio, uma empresa que precisa garantir seus resultados, e quando esses resultados são passíveis de compreensão através de estatísticas que demonstram que os "rendimentos" da empresa estão sendo bem empregados, logo percebemos que o "Deus" de que falamos em todo esse texto só pode ser o Deus-Mercado. Essa deidade parece, realmente, não entender muito de educação, mas de gerenciamento de empresas e administração de verbas.

O projeto Universidade do Professor, que é uma iniciativa do governo do Estado juntamente com o financiamento do BIRD, tem demonstrado que as iniciativas frente à educação no Paraná são, na verdade, maneiras de atrair divisas para o Estado. O Banco Mundial, juntamente com este projeto da Universidade do Professor, tem financiado vários outros projetos, como a CORREÇÃO DE FLUXO, entre outros(6), que tem desqualificado a educação , porém, gerando benévolas estatísticas de queda do índice de repetência e evasão escolar. No entanto, pouco tem-se discutido que uma criança que sai da 5a. série e, cumprindo um programa apostilado, vai para a 8a série, em muitos casos, "semianalfabetizadas" e sem o menor domínio dos conhecimentos básicos que estas séries objetiva propiciar. Os olhos de Deus, neste caso, são equivalentes aos olhos dos ídolos, que "têm olhos, mas não enxergam; têm ouvidos, mas não ouvem". O Deus-Estatística, o Deus-Mercado, não vê as pessoas, vê os números; o governo não prima pela qualidade da educação, mas pela quantificação de recursos advindos para seu Estado.

Se formar e atualizar professores é ficar uma semana sentado em anfiteatros para ver o show de artistas (bem pagos!) , fazendo rir uma platéia de adultos sem o menor senso crítico, se atualizar professores é repetir informações pasteurizadas que qualquer um pode ter acesso facilmente ao folhear uma enciclopédia ou um desses manuais de banca de revistas, o programa da Universidade do Professor está realmente de parabéns! Mas se a educação continuar sendo a busca incessante dos conhecimentos acumulados pelas gerações anteriores, a formulação de novos conhecimentos, a compreensão do mundo ao nosso redor, a redefinição das relações interpessoais, pessoais e extra-pessoais, o domínio de habilidades importantes para o desenvolvimento de tarefas fundamentais no mercado do trabalho, a formação crítica de seres humanos capazes de auto-definirem os rumos para suas próprias vidas e de sua cultura, a construção da cidadania e da solidariedade em nosso país, então, Faxinal do Céu, pode ser mandado para o inferno!

Uma estética da sensibilidade, uma política da igualdade e uma ética da identidade realmente irão atingir seus objetivos quando esses objetivos não forem manipulados pelo Deus-Empresa, pelo Deus- Mercado. A apropriação de um discurso humanista com fins de dominação e reafirmação do poder vigente já foi visto na história através dos sacerdotes de outros deuses...

O paradoxo de Faxinal do Céu é apresentar e defender excelentes princípios pedagógicos e humanísticos, mas agenciá-los para fins empresariais de rentabilidade e lucro. Se a educação é a Segunda natureza do homem, a Universidade do Professor parece querer transformar o mercado na Primeira, uma vez que todo discurso efetuado no interior das belas dependências da Universidade do Professor tem como objetivo convencer (o que eles chamam de formação) os professores de que os melhores métodos utilizados hoje em dia - seja no setor público, seja no setor privado - são as metodologias empresariais liberais que contemporaneamente ganharam a alcunha de Qualidade Total. Ou seja, é preciso, como em toda a história do capitalismo, cada vez mais produzir mais a um custo cada vez menor dentro de um tempo cada vez mais reduzido. Essa racionalização dos princípios pedagógicos que norteiam a educação no Paraná esvaziam a dinâmica educacional que pretende realizar aqueles princípios que a própria Universidade do Professor elegeu como seus, ou seja, não será possível uma política da igualdade quando são os interesses financeiros do Estado - que se desdobra para atrair cada vez mais verbas do Banco Mundial - é que decide os princípios norteadores da educação. Não é um Banco, por mais importante que ele seja na dinâmica do mundo globalizado, que deve definir as diretrizes da educação e do ensino em um Estado. Os recursos financeiros, o capital, deve estar a serviço da educação e não a educação a serviço do capital.

Não haverá uma ética da identidade enquanto a cidadania não for conquistada, construída. Alunos que são levados a "passar de ano" para não onerar os cofres do Palácio Iguaçu(7), que enfrentam programas de aulas e conteúdos compactos, onde a permanência nas salas de aula lhe garantem o êxito em suas atividades discentes, ou seja, "passar de ano" , é um mecanismo equivalente ao que se passa hoje em dia nas indústrias contemporâneas: cada vez mais o trabalho é compactibilizado, o tempo de produção é cada vez menor e os lucros, é claro, são cada vez maiores. Mas , para quem? Para não falar no desemprego, na violência urbana, no tráfico de drogas, na perca do sentido da vida que temos observado crescentes com o estabelecimento da Nova Ordem Mundial, falaremos tão somente dos efeitos desta visão contemporânea no setor da educação. A escola tornou-se negócio lucrativo. Não há dúvidas de que um dos ramos de prestação de serviços que mais tem se desenvolvido no Brasil das últimas décadas é o do setor do ensino privado. E os rendimentos daqueles que investem nesta área é pelo menos duplo: 1)O lucro em sua forma mais tradicional, como rendimento excedente fora os gastos com o empreendimento; 2) A formação de "consciências" formadas para defender esse tipo de sistema como o único possível. De um lado lucra-se com o capital gerado nestas atividades, de outro lucra-se com a manutenção e arrebanhamento de novos sacerdotes para a seita. Os alunos não são máquinas assim como os desempregados não são (lixo) descartáveis. A escola não é uma empresa. A natureza da instituição escolar não é e não deveria ser a busca pelo lucro, a manutenção de uma sociedade estratificada e pautada nas diferenças sociais.

É sempre possível ouvir o som da argumentação de quem diz que se o projeto da Universidade do Professor acabar não dando certo, ou seja, elevar o nível de formação e realmente atualizar o professor sobre o conteúdo de suas disciplinas específicas e, sobretudo, dos problemas que atingem o mundo contemporâneo, que, ao menos, o Estado agiu com boas intenções, pois veja, os princípios, as "falas", a motivação da empresa que assumiu a tarefa de realizar o que o Estado lhe designou são tão "boas". Ora, como diz o adágio popular: "O inferno está cheio de boas intenções". Para além dessa ingenuidade principiante, é preciso pensar que governo algum do mundo gasta o recurso de 33 milhões de dólares/ano num projeto sem que ele tenha objetivos bem determinados. Aliás, o fim de uma empresa é sempre esse: alcançar objetivos de crescente lucratividade, ainda que isso implique causar uma vastidão de desempregados ou um esvaziamento completo das práticas educacionais.

Não poderemos falar de uma estética da sensibilidade na medida em que ela remete-se à criatividade, à autopoiese, isto é, a realizar as coisas por si mesmos, com autonomia, com consciência, com liberdade e discernimento. Uma estética da sensibilidade, advirto aos papas do ensinamento do "mosteiro" de Faxinal do Céu, não é falar do Barroco, da perfeição das obras renascentistas, da poesia romântica do XVIII, ou qualquer coisa do gênero acompanhada de um show de imagens e recursos audiosonoros. Enternecer as pessoas, contar belas histórias de contos de fadas, fazê-las olhá-las para as estrelas e descobrir sua extrema pequenez frente ao imenso universo galáctico, não é favorecer que as relações humanas sejam mais justas e solidárias. Ouvir os clássicos europeus da música, assistir balé, assistir teatro, frequentar apresentação de músicas folclóricas não é cultura, senhores! (Ao menos cultura não é apenas isso). Principalmente quando atrás de cada um desses eventos, de cada uma dessas palestras, há sempre uma máxima ou um raciocínio que procura quantificar a experiência humana que é a experiência pedagógica; quando por detrás das cortinas os bio-metais caem, volumosos, nos cofres de uma empresa conhecida por Luna & Associados; quando idéias falsárias e individualistas como: "se sua escola não está bem, é porque você não está bem", ou ainda, "o Brasil não vai pra frente porque você não faz a sua parte e espera tudo das mãos do Estado" , são repetidamente afirmadas num curso de formação para professores, há que se perguntar realmente se os professores de Faxinal do Céu não são tratados como palhaços.

É claro que no mundo contemporâneo ninguém vai culpabilizar o Estado por tudo que acontece com seus cidadãos – no caso de nosso país, com seus indivíduos. É óbvio que todos nós temos importantes papéis a cumprir, importantes funções a desempenhar. Mas é claro que o Estado também tem sua função, também joga um papel definitivo nas relações sociais, sobretudo quando o assunto é direcionamento de recursos e verbas para os setores prioritários da vida de um país, de um estado ou município. Criar um projeto, uma Universidade do Professor, com o discurso de formação e atualização, mas que acabam por infantilizar os profissionais, na medida em que os tratam como mero espectadores de um espetáculo que de desenrola a cada dia, dentro de uma semana, nos auditórios da cidade, é, no mínimo, revoltoso.

Mas, será que somos todos palhaços nesses auditórios circenses de Faxinal do Céu?


O SILÊNCIO DOS RÉUS

Infelizmente a pior constatação em Faxinal do Céu foi ver que aparentemente a maior parte dos professores avaliam que a Universidade do Professor alcança de maneira satisfatória os seus objetivos, ou seja, os professores saem formados, mergulhados em cultura e conhecimentos. Além de saírem encantados pela bela paisagem e pela competência dos papas da erudição, consideram que devem voltar às suas escolas e, a partir de então, poderão transformar a triste realidade dos colégios e instituições de ensino num mar de rosas, pois o segredo fora desvendado em Faxinal, isto é, uma vez descoberto que o problema do ensino estava em não reconhecer técnicas de relaxamento, em nunca ter visto como é bela uma apresentação de ópera ou de balé, ou, quem sabe, pelo fato de que o estresse sempre fora o grande vilão dos professores – (e não suas causas), mas que, como viu-se no Segmento Qualidade de Vida, uma boa dose de exercícios de relaxamento junto com pensamentos positivos, o estresse é uma realidade superada e que, finalmente, podem voltar para o mundo secular e converter os pagãos. A impressão que se dá é que, para muitos de nós professores, Faxinal é realmente o Céu. Voltam extasiados da visão que tiveram do paraíso. A volta, nas carruagens de fogo (ônibus) é triunfal: "Como foi bom!"; "Ah! Como é lindo aquele lugar! E aquele palestrante então! Nossa!!". Aqueles que sempre estiveram mais próximos dos pecados da carne, como a gula, acanhados numa poltrona do ônibus apenas ousa comentar: "Tudo foi lindo, mas, aquelas guloseimas..." Depois disso, percebe-se um ou outro olhar recriminador (próprio dos professores) , mas há mais conivência do que recriminação nesses sinais.

No que tange a uma avaliação criteriosa e integral do projeto da Universidade do Professor, há um silêncio completo. Qualquer coisa entre o céu e o inferno. Um hiato do tempo. Um vazio. O nada. Os olhos se fecham quando inquiridos a este respeito, as bocas mumificam-se, e não compreendo se é pavor, medo ou ignorância. Os ouvidos estão como a ouvir os cantos gregorianos, e se negam a qualquer coisa que seja mundana. "Quem é o estranho entre nós que ousa perturbar a paz dos convertidos? Quem é esse que, estando entre nós, não foi capaz de colher as maravilhas do Jardim do Éden"? Quem é esse forasteiro que não viu as maravilhas realizadas por Deus?" Essas são as traduções das expressões de indignação contra quem ousa desafiar Deus; ou, mais modestamente, contra quem deseja só e simplesmente uma avaliação mais participativa, crítica e consciente do que foi o seminário de formação e atualização.

Em Faxinal do Céu quiseram nos tornar anjos. Seres acima do bem e do mal. Seres sem problemas, vivendo numa realidade sem problemas. (Senão como explicar que em nem um só momento foi feito uma exposição ou palestra sobre as grandes crises e os gigantescos problemas que explodem no país e no mundo). Mas, como no céu cristão, nem todos os anjos são iguais, assim como `a noite nem todos os gatos são pardos.


OS ANJOS REBELDES

Na calada da noite, enquanto Deus tranca-se numa sala de escritório para contar seus bio-metais, os humanos (alguns já metamorfoseados em anjos, outros ainda humanos) entregam-se às ocupações noturnas, bastante limitadas no CÉU. Há apenas um shopping com dois barzinhos e uma semi pista de dança, e, mais afastado, um outro bar, este reservado quase que exclusivamente aos funcionários e assessores de Deus. A grande maioria passava por esse reduto de pecado apenas para conferir, tomar uma bebida, uma paquerada, e logo voltavam ao reto caminho da virtude: os chalés. Outros, porém, mais abusados, hereges da disciplina, insistiam no pecado. Esses humanos, desafiadores dos poderes divinos, foram por mim conhecidos como os anjos rebeldes.

Os anjos rebeldes, na calada da noite, reunidos em pequenos grupos, conspiravam contra Deus. Nem todos os professores fizeram papel de palhaço nos grandes auditórios da cidade de Faxinal. A indignação, o protesto, já que não era permitido no decorrer das palestras, não era proibido quando os "olhos de Deus" já não estavam acordados. Ao som dos insetos noturnos e da bela paisagem do lugar ( enfim, tal paisagem haveria de servir para alguma coisa além de namores escondidos) os anjos caídos lançavam suas luzes sobre as várias e sofisticadas formas de repressão e reciclagem dos papas da erudição; tornavam claro os inteligentes e variados modos de massificação de consciências e ressignificação dos discursos; faziam emergir os vários projetos, coerentemente articulados mas sinistramente camuflados, que compõem a parceria do governo do Estado com o Banco Mundial. Mas por que os anjos rebeldes não proclamavam essas verdades apócrifas aos quatro cantos do universo (ou, ao menos, em Faxinal)? Por que calavam-se durante o dia, e rasgavam o verbo a noite?

Muitos anjos rebeldes já haviam sido punidos pelos querubins e serafins assistentes de Deus. Histórias terríveis acontecem nos porões do palácio celestial (aliás como em qualquer porão, basta lembrar a Ditadura...). Não. Não pensem em torturas, em mortes fantásticas, em ratos roendo a carne humana. Não pense nisso literalmente, use mão da faculdade da metáfora. Pois o rato existe, e é cada vez maior; a carne humana também existe, cada vez menos, mais fatigada. Desemprego, perda de cargos, reprovação no estágio probatório, recusa de projetos etc. são exemplos das punições exercidas pela Santa Inquisição.

Ademais a disposição das estruturas no sagrado solo de Faxinal do Céu impedem o contato entre os simples mortais. Os auditórios são longínquos uns dos outros. Nos chalés cabem quatro pessoas, duas em cada quarto. Raramente essas pessoas participam do mesmo rebanho(8), o que as deixa com horários completamente diferentes. Se elas, porém, fazem parte do secreto grupo dos anjos rebeldes, pode ser que na calada da noite se conheçam, mas se fazem parte do enorme rebanho de ovelhas brancas e angelicais que plenam os pastos da Cidade do Professor, então, é assim que permanecerão, como ovelhas num rebanho que não conseguem distinguir sequer o cheiro das outras.

Os querubins e serafins, assistentes de Deus, caminham silenciosamente pelas ruas. Uniformizados e algumas vezes equipados com rádio-transmissor lembram outros uniformes verde-oliva que teimam em não sair da memória – e, no caso de alguns, do corpo. O Deus, como a maioria dos deuses, é incomunicável e absoluto. Sua presença está em todos os lugares mas somente seus sacerdotes, papas, querubins e serafins são capazes de com eles se comunicar. Os mortais devem fazer sacrifícios.

Por falar em sacrifícios seria interessante lembrar que o tempo de vigília no CÉU é extremado. Logo cedo, quando o Diabo ainda nem escovou os dentes, Deus manda badalar os sinos para acordar a seus súditos. (Isto não é nenhuma metáfora não. Há mesmo sinos que despertam os professores avisando que é hora de acordar para tomar o café da manhã). Do refeitório para os auditórios. Dos auditórios para o refeitório. Ás vezes essa rotina se altera. Do refeitório para o auditório, do auditório para o refeitório, e do refeitório para o ginásio de esportes. Mas o conteúdo jamais se altera: tanto nos auditórios quanto no ginásio de esporte haverá palestras e as babas dos papas da erudição. O ritmo dos seminários em Faxinal do Céu, assim como a disposição das estruturas físicas que lá se encontram são todas bem formuladas pelos engenheiros celestes para que não sobre tempo nem haja oportunidade para que os professores possam trocar a menor experiência. O diálogo, lá, realmente é tratado como coisa do Diabo.

É verdade que houve o Segmento de Construção Coletiva, que se tratava de reunir os projetos trabalhados pelos professores em suas escolas , afim de reuni-los em um banco de dados na Secretaria da Educação. Idéia divina, concordo. Mas, perguntavam os anjos rebeldes: "Esses projetos foram discutidos? Que tipo de projetos deveríamos fazer para as diferentes instituições de ensino que temos no Estado? Antes de se relatar os projetos foi feito ao menos uma avaliação diagnostica para sabermos do que mais precisamos em nossas escolas?" Essas perguntas, como muitas outras, ficaram sem respostas. Caladas por uma expressão rígida de alguma face sagrada, ou pela ríspida resposta de algum dos papas que dizia não querer confusão em seu reinado. Tudo bem, eu sempre achei que a democracia divina deveria ter outro nome...


EXISTIRÁ O CÉU?

Realmente não vi anjos barrocos brincando de inocência nas nuvens de Faxinal. O CÉU de lá, o pretenso paraíso não ofuscou minhas singelas retinas com sua glória e beleza. Os serafins e querubins não me encantaram com suas melodias harmoniosas e suas marchas uniformizadas. Os papas, por sua vez, não conseguiram converter-me ao seguro e virtuoso caminho dos novos guerreiros das cruzadas da educação. O próprio Deus não conseguiu tocar meu corpo e coração e, de uma vez por todas, transformar-me em anjo para habitar suas divinas moradas.

Apenas os anjos habitam a morada de Deus. Somente os convertidos, os de coração puro, os obedientes; somente aqueles que enxergam o mundo pela ótica de Deus são dignos de com ele estar. Somente aqueles que se renderam aos encantos do CÉU, que se mostraram aptos a acolher as mais "profundas" revelações do evangelho editado pela LUNA & ASSOCIADOS estão preparados para gozar da companhia dos anjos e serafins e, é claro, do Deus soberano. O Deus soberano não é sequer a Luna & Associados, tampouco o Estado do Paraná ou o Banco Mundial. Esses são sub-deuses a serviço do Mega-Deus-Mercado. Quem não dobrar seus joelhos ante Deus e não reconhecer sua magestade e soberania ... será lançado ao caldeirão de enxofres.

É verdade que as fragrâncias em Faxinal são muito agradáveis, mas, para alguns, aquela sensação de cheiro de enxofre não foi efêmera. Sua permanência foi mesmo intrigadora. Alguns, mais exaltados, procuraram a todo custo o tal caldeirão escondido em alguns dos porões daquela cidade. Foi em vão. Nada de inquisições públicas, nada de bruxas queimando nas fogueiras, nada de maquiavélicas ferramentas de tortura contra os hereges... Mas então, para onde vão ou o que acontece com os rebeldes? E o inferno? E o Diabo?

A frustração dos inocentes é acreditar que o Diabo não existe ou que foi derrotado pelo sacro-santo exército divino. Na realidade, porém, o Sem-Nome, o Caramunhão, o Maldito, o Cão, o Satanás, o Belzebu, é o rei das aparências e das ressignificações. É o lobo vestido de cordeiro. Cuidado ovelhinhas brancas, que caminham juntas nos rebanhos, dentre vós pode estar um lobo faminto, devorador infatigável, espreitando-vos em qualquer esquina ou terreno acidentado (próximo ou não de uma escola)! ...

O inferno não são as escolas, como muitos dos professores tendem a acreditar ao retornar de Faxinal do Céu, pois como voltam convertidos, convencidos de que mudando algumas de suas atitudes pessoais e profissionais vai dissipar os problemas de sua escola, assim, passam a fazer relaxamento em sala de aula com seus alunos, contam a estória de que o Governo do Paraná investe na educação em geral e nos professores em particular, enfim, conta-lhes estórias da carochinha e, não muito tempo depois percebem que seus esforços estão sendo em vão e que até mesmo, algumas vezes, são motivos de risos de algum aluno mais atrevido. Como a situação não muda, não tece nenhuma consideração crítica a Faxinal do Céu, afinal lá é tão lindo! Sua ira, sua frustração e indignação recai sobre sua escola, seus alunos... Ali é o inferno. Ali os diabinhos estão a correr de um lado para outro entre corredores e pátios. Como não é possível voltar ao CÉU imediatamente, é preciso aguentar um pouco mais no inferno, afinal, o pão que o diabo amassou é nele produzido.

Não acredito, caros leitores, em sistemas ideais, em planejamentos perfeitos ou em cursos de formação e atualização de professores que consiguam agradar a gregos e troianos. Tampouco acredito em qualquer Deus único, ou na soberania de qualquer Estado. Muito menos acredito nas farsas do mundo globalizado ou nas imagens patéticas de um governo que a custa de propagandas e projetos espetaculares (de espetáculo, de show) procura convencer seus eleitores, particularmente os professores de que ocupar uma ex-vila do interior do Estado, construir ali três ou quatro auditórios, um belo refeitório e alguns chalés; implementar obras de engenharia florestal, criando um lindo horto com árvores de vários países, onde, em eu coração repousa um fundo lago; associar estas estonteantes paisagens a uma administração de uma empresa de consultorias empresarial, responsável por implementar no sistema de ensino paranaense a Qualidade Total, resolva os problemas do ensino e da educação no Paraná. Não é que eu não acredite que isto tenha acontecido. Eu não posso acreditar é que os olhos continuem fechados, os ouvidos tapados e as bocas mumificadas por muito mais tempo. Não posso acreditar que os professores do meu Estado prefiram que o governo gaste milhões de dólares num projeto fantasia, cheio de sonhos e ilusões, ao invés de fazer um programa de atualização e formação de professores consistente; ao invés de garantir as mínimas condições para o funcionamento das escolas, coisas muito concretas como giz, carteiras, cadeiras, quadros-negro, e, até mesmo sala de aula. Não posso crer que nós, os professores, prefiramos que o governo do Estado gaste mais com a fantasia da existência de um CÉU do que com as preocupações mais seculares possíveis, como o salário dos professores, como o material didático para alunos e recursos pedagógicos para os profissionais da educação. Não é possível acreditar que milhares de crianças, jovens e adolescentes estejam pelas ruas, envolvendo-se na violência urbana, afundando-se cada vez mais na marginalidade do sistema, enquanto o governo gasta o recurso dos contribuintes numa estória de faz-de-conta, onde existem céus, querubins, anjos e até um Deus.

Não acredito em sistemas ideais, em governos ideais, em pedagogias ideais, em professores ideais. Eu acredito no mundo. No bom senso. Se houvesse uma estética da sensibilidade, uma política da igualdade e uma ética da identidade promovida por esses cursos de formação e atualização dos professores no Paraná não teríamos a violência que encontramos ao redor de nossas escolas; não teríamos crianças mendigando vagas nas escolas primárias e nem jovens e adolescentes frustrados com a educação que receberam. Não teríamos as constantes greves de professores que além de salários pedem qualidade no ensino. Não teríamos uma dívida interna assustadora, e nem 334 milhões de dólares gastos com propaganda no atual governo paranaense.

Infelizmente nem o CÉU nem o Inferno, nem Deus nem o Diabo irão resolver os problemas da educação. Essa é uma tarefa coletiva, social, mas que se não tiver a participação ativa , lúcida e crítica dos profissionais envolvidos com a educação, será possível, dentre pouco tempo, perceber que aquele cheiro de enxofre pressentido em Faxinal do Céu seja todo o interior da crosta terrestre que começa a emergir... O Céu não é acreditar ser possível um Estado onde a educação possa ser democrática e de qualidade e estendida a todos os cidadãos; isso não é utopia, isso, leitores, é sobrevivência.

 

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NOTAS:

1 Estatuto Social da Universidade do Professor. Capítulo II. Governo do Paraná., p.3

2 Pelo menos 70.000 professores já visitaram Faxinal do Céu desde 1995.

3 O termo CEU, em letras maiúsculas refere-se ironicamente à cidade Faxinal do Céu.

4 Revista: Carta Capital, 22 de julho de 1998, p.44

5 Carta Capital de 22 de julho de 1998, p.44.

6 Dentre os vários projetos do Estado do Paraná com o BIRD constam aqueles que versam sobre Meio-Ambiente, Informática, Cidadania, entre outros. É necessário mencionar que esses projetos, via de regra, obedecem a mesma dinâmica empresarial que o projeto da Universidade do Professor.

7 O Palácio Iguaçu é a sede do Governo do Paraná.

8 O curso na Universidade do Professor recebe cerca de 1000 professores a cada seminário. Esse grupo de 1000 professores é dividido em vários grupos, quatro ao todo. Cada participante de um destes grupos tem horários completamente diferentes uns dos outros.

 

* EDUARDO DAVID DE OLIVEIRA é professor na Rede Estadual de Ensino do Paraná, graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná, atua na disciplina de História no Colégio Estadual da Vila Osternack, periferia da cidade de Curitiba. Pesquisador do Instituto de Filosofia da Libertação – IFIL, interessa-se por estudos sobre a cultura africana- sobre a qual esta fazendo um Curso de Especialização, e pelo estudo da Práxis dos Movimentos Populares.