A QUESTÃO DE GÊNERO NO CANDOMBLÉ

Eduardo David de Oliveira(1)
Marcilene Garcia de Souza(2)
Maria José da Silva S. Paula(3)

Introdução

O presente artigo intentará desenvolver sumariamente duas questões: 1) Quais os principais conteúdos que diferenciam a visão de mundo expressa pelo candomblé quando comparado aos da cultura hegemônica e, 2) Como estes conteúdos se manifestam na concepção de gênero presente no candomblé.

A partir destas duas questões principais, trataremos de problematizar uma gama de questões pertinentes a este artigo, tais como as dificuldades de se fazer uma crítica à cultura hegemônica, ou ao grande problema de, ao intentarmos uma crítica ao modelo ocidental, não recair nas mesmas estruturas que esse modelo propaga. Ou seja, como não ser ocidental estando no ocidente? Vale ressaltar que as problematizações bem como o desenvolvimento central do trabalho será abordado de maneira sintética e com uma bibliografia restrita. O objetivo é destacar os traços mais importantes da visão de mundo africana, presentes no candomblé, e atentar para as consequências que esta visão de mundo traz à discussão sobre a questão de gênero.

Por fim, primaremos por tecer algumas considerações críticas em relação às questões abordadas, e indicações de algumas possibilidades de pesquisa a partir desta discussão(4).


I. Os principais conteúdos que diferenciam a visão de mundo expressa pelo candomblé quando comparado com as da cultura hegemônica.

Sabe-se que não é possível falar de uma cultura ocidental assim como não é possível falar de uma cultura africana. Não existe cultura ocidental nem cultura africana. O que existe é uma infinidade de culturas ocidentais ou africanas, das quais, mesmo com o risco de generalizações, é possível identificar alguns traços comuns. O plural ao qual nos remetemos é de extrema importância, pois à medida que fugimos da tentação de ver a África como um todo unitário, e, na medida em que abandonamos a ingênua noção de homogeneidade ocidental, podemos avançar nas reflexões acerca das culturas em questão, considerando não apenas os aspectos geográficos, mas também, e principalmente, os aspectos históricos e sociológicos. Não obstante, cremos ser possível destacar alguns traços ou valores que estruturam uma sociedade. Mas, é preciso insistir neste ponto a fim de não obscurecer a questão: tais características gerais serão abordadas desde uma perspectiva estruturante, isto é, busca-se destacar os elementos que compõem uma certa visão de mundo, sem no entanto pretender que esta visão de mundo seja adotada por todas as pessoas ou grupos que habitam esta determinada cultura. Assim, apesar de compreender que existe uma grande diferença entre os países da Europa e os países da América do Norte, cremos ser possível identificar elementos estruturantes, criados historicamente, que permeiam tais sociedades; sabemos, entretanto, que no interior dessas sociedades não existe uma homogeneidade de concepções de mundo, por exemplo, há grande diferença entre os povos que vivem no campo e entre os povos urbanos; entre os últimos, há uma diversidade fenomenal de modos de vida diferenciados, porém, todos esses modos de vida, de uma maneira ou de outra, estão "subordinados" a um modelo padrão de cultura, ao qual nos deter a fim de discutirmos sobre o ocidente e sobre a cultura africana presente no candomblé.

Privilegiaremos a tensão que se torna explícita entre a "visão de mundo do candomblé" e a "visão de mundo ocidental". O candomblé, uma espécie de síntese de alguns valores civilizatórios africanos, ora está em conflito com o modo de vida ocidental, ora o absorve. Este processo, mais concomitante que simultâneo, permite-nos apontar para duas questões: 1) em que medida a visão de mundo inerente ao candomblé é capaz de apontar alternativas para a crise do modelo ocidental, e 2) em que medida o candomblé, ao absorver elementos da cultura ocidental, ao adaptar-se à modernidade dos novos tempos, não perde justamente os elementos estruturais de sua cosmovisão africana.

Segundo Sueli Carneiro e Cristiane Cury(5):

Quando a sociedade capitalista , através das relações sociais de produção que estabelece, reifica o indivíduo, desumanizando suas relações; quando propõe uma visão individualizante de mundo, destituindo núcleos comunitários remanescentes de outros momentos históricos; quando fundamenta uma ciência que tem como função a dessacralização da cultura, forjando seu reino na terra, parece significativo o fato do candomblé se expandir vertiginosamente, levando-nos a crer que este se coloca como uma forma de resistência à fragmentação da existência do homem brasileiro, seja no plano concreto, seja no plano ideal da explicação ontológica.

Podemos afirmar que o candomblé é uma religião de matriz africana porque ele reúne diversos cultos a orixás da África num só panteão, preservando, uma estrutura mítica semelhante aos cultos africanos. Na diáspora dos negros africanos, etnias distintas, sob a hegemonia dos povos yorubás (principalmente), criaram em solo brasileiro o que hoje chamamos de candomblé. Esta religião possui um sistema mítico que contrasta e conflitua com a ordem racionalista e excludente do mundo ocidental.

O sistema mítico do candomblé não é fragmentário nem excludente; é totalitário - no sentido de abranger o ser humano como um todo -, e integrativo. Os mitos, os processos de iniciação, os rituais, enfim, toda a estrutura mítica do candomblé obedece a uma lógica própria, lógica essa que concebe o tempo e o espaço diferentemente de como os concebe o mundo racional, baseado em axiomas científicos, do ocidente. Enquanto o que regula a sociedade capitalista ocidental é o tempo cronológico, tempo medido sempre pela produção do capital, tempo, enfim, sempre capitalizado, no candomblé prevalece o tempo mítico. Enquanto o primeiro é fragmentado e linear o segundo se realiza plenamente dentro de um ciclo que abarca a totalidade do ser humano.

A racionalidade do tempo cronológico reifica o homem, estabelece a perda da identidade, sustenta a particularização e especialização da cultura ocidental. Com efeito, a ciência moderna, ou melhor ainda, desde a filosofia moderna (pelo menos!) o ser humano vê-se esquadrinhado pelos saberes específicos. Surge as ciências humanas, cada qual especializada em compreender uma faceta do sujeito; o sujeito, categoria central no discurso filosófico da modernidade, aparece como uma identidade particularizada, autodeterminante e absoluta, no entanto, sempre permanece como um projeto, como um objeto de estudo para as ciências. Ora, podemos rapidamente perceber que na cosmovisão do povo-de-santo, mais que "santificar" a visão de sujeito é "sacralizada" a noção de comunidade; o sujeito, por sua vez, aparece em sua plenitude, individuado, mas não isolado ou reificado; são "partes" do universo, do todo, e como parte do todo, traz em si esta dimensão totalitária, isto é, o indivíduo carrega consigo a compreensão metafísica e ontológica da qual faz parte. Os ritos e preceitos do candomblé lhe dão condição de assumir essa dimensão cosmogônica.

Segundo as autoras citadadas, o candomblé recupera o indivíduo em vários aspectos:

1. Inscreve-o numa ordem metafísica, propondo-lhe um ser mitológico indivisível;

2. articula esse ser ontológico, essa singularidade, a um universal expresso por um panteão; promove assim sua elevação espiritual;

3. restitui-lhe sua dimensão natural, pois é estreita a correspondência entre os elementos da mitologia e os elementos da natureza. Portanto, ao inseri-lo nesta mitologia, inscreve-o, ao mesmo tempo, no reino da natureza, recuperando assim a unidade entre homem e natureza;

4. a mitologia, ao referir-se a todas as ações humanas significativas, explica e compreende suas contradições sociais e individuais, propondo caminhos alternativos para sua ação sobre o real;

5. em oposição ao projeto individualista da sociedade global, oferece-lhe uma opção comunitária"(6).

Seguindo o estudo de outra autora, Ronilda Ribeiro, dizemos como ela que a noção de pessoa na África Negra, e consequentemente no candomblé, "é tida como resultante da articulação de elementos estritamente individuais herdados e simbólicos. Os elementos herdados o situam na linhagem familiar e clânico enquanto os simbólicos a posicionam no ambiente cósmico, mítico e social"(7). Essa concepção de pessoa apesar de reconhecer a importância do indivíduo não aparta-o da vida social; pelo contrário, um dos elementos que o compõe é justamente o social, a dimensão coletiva e comunitária de sua existência.

Além da noção de tempo e espaço, e da noção de sujeito existem outros elementos que compõem a cosmovisão de mundo africana assumida pelo candomblé. A questão da ancestralidade, do princípio de senioridade, da palavra, do poder, da integração, da inclusão, da vida comunitária, da pragmática, da inocência, da valorização e integração com a natureza, da bipolaridade dos elementos, da Força Vital, dos ritos funerários e da concepção de morte, da produção etc., são também elementos componentes desta visão de mundo africana, que, entretanto, deverão ser aprofundados em outra pesquisa. Porém, o princípio da unidade dos contrários, que organiza todo esse sistema, merecerá, neste trabalho, uma atenção especial.

A dualidade dos elementos não é negada no candomblé. Pelo contrário, a bipolaridade é assumida. Não existe o "bem" e o "mal", existem forças, energias, que podem ser manuseadas, tanto negativo como positivamente, ou melhor dizendo, que podem ser manipuladas tanto para a construção como para a destruição. É curioso perceber que nas religiões africanas não deixa de ser comum a existência de divindades duplas, isto é, uma divindade feminina e outra masculina, ambas possuindo o mesmo poder. Essa característica estruturante das religiões africanas chegou ao Brasil através do candomblé, e é por isso que podemos dizer que o princípio da sexualidade estrutura todo o sistema desta religião de matriz africana.

O sistema do candomblé é dialético e interligado. A interdependência é a primeira coisa que se aprende no sistema. Há uma divisão social e sexual do trabalho, mas ninguém é absoluto numa função pois existe a interdependência. Não há um trabalho mais importante que o outro.

Há uma tensão entre os sexos. O candomblé reconhece, mitifica, e assume essa tensão. A mulher não é o equivalente do homem, não é a "costela de Adão" (item 2).

Ora, vimos anteriormente que o ser humano vivendo sob a égide do sistema capitalista, vale dizer, da visão de mundo ocidental, cada vez mais preso nas teias da racionalidade e da consequente fragmentação do mundo, experimenta um vazio existencial, uma vez que seu "eu", longe de uma dimensão comunitária e de um sistema que lhe dê conta de entender-se como pertencente a uma totalidade, desemboca num certo "desespero" moderno, num mundo desencantado(8), onde tudo parece dominável, mas que, em verdade, é o sujeito que por tudo é dominado. Diante deste quadro nada promissor apresentado pela cultura ocidental, o candomblé surge para estes indivíduos como uma alternativa não apenas religiosa, mas também política e social, pois o candomblé é um modo de vida.

Isto talvez explique por que cada vez mais existem indivíduos, cuja cultura é originária do ocidente, aproximádo-se do candomblé. "Em oposição ao anonimato da vida social moderna, o candomblé propõe uma existência personalizada, nominalizada, propiciando inserção ordem comunitária como resposta específica ao vazio existencial decorrente de sua fragmentação individual no social"(9).

Os problemas que podem ser levantados neste item serão abordados no item 3, sendo que no presente item cremos ter abordado os principais conteúdos que diferenciam a visão de mundo expressa pelo candomblé quando comparado com os da cultura hegemônica.


II. Como estes conteúdos se manifestam na concepção de gênero presente no candomblé.

Ao vermos como as mulheres se inserem-se no interior da concepção de gênero presente no candomblé, estamos à volta, novamente, com as questões que envolvem a sociedade em que o candomblé está inserido, ou seja, mais uma vez identificamos aí elementos de contraste com a visão de mundo, e consequentemente de gênero do candomblé, ora rivalizando, ora absorvendo elementos da cultura ocidental, que no caso chamamos de patriarcal ou machista(10).

Enquanto o princípio que estrutura a sociedade ocidental é o patriarcalismo, o machismo, o falocentrismo, nas comunidades de "terreiro" o que estrutura o sistema é o princípio da unidade dos contrário, o princípio da sexualidade.

Este princípio da sexualidade como já pincelamos no capítulo anterior, é o que estrutura todo o sistema. Aqui a bipolaridade é um princípio; o conflito entre os sexos é assumido, e não descartado. Não subjuga-se um sexo em favor do predomínio do outro. Existe a reciprocidade entre eles. Mas claro, como há conflito, existe uma disputa pelo poder, uma política envolvendo os gêneros, mas que, no entanto, não prima pela dominação da alteridade, e sim pelo controle. Ademais, quando falamos que nas "roças" de candomblé os trabalhos são divididos social e sexualmente, estamos falando que estes trabalhos são divididos em funções que, por sua vez, estão assentados em princípios bem preservados na tradição. As funções obedecem a idade de iniciação do povo-de-santo, bem como respeita o estágio de vida real pelo qual a pessoa está passando. Assim, uma mulher menstruada, por exemplo, não poderá jamais tocar em alguns objetos sagrados por causa do seu estado, assim como os homens da "roça" não poderão jamais conhecer os segredos de algumas funções femininas. Mas o que é importante destacar é que as funções femininas e as funções masculinas se complementam, isto é, não existe uma sem a outra. Essa reciprocidade é fundamental para a estruturação do sistema mítico e social do candomblé.

A mulher, em especial, possui um papel primordial que a sociedade capitalista não lhe permite desempenhar. Se nesta, a mulher é uma reprodutora, está subjugada pelos princípios falocráticos que permeiam os valores sociais, naquela, a mulher também é reprodutora, mas em uma dimensão muito mais ampla, abarcando as esferas do material e do simbólico.

"Acreditamos residir fundamentalmente no mistério da concepção da vida a associação da mulher ao segredo, ao temor do desconhecido, à natureza selvagem, às profundezas das águas e suas turbulências, à terra, ventre fecundo onde tudo nasce e para onde tudo retorna, e ao fogo sensual que conduz ao encontro"(11).

A importância da mulher tanto no ritual das religiões de matriz africana no Brasil, quanto na sustentação da vida social da família, tem motivos históricos. A mulher negra, após a "abolição da escravatura", viu-se frente a uma estrutura social onde o homem negro, alijado do mercado de trabalho, expropriado de sua força de trabalho e marginalizado por sua condição racial já não podia manter o núcleo familiar como outrora. Diante deste quadro a mulher negra assume a responsabilidade de encontrar alternativas de sobrevivência da família, em última instância, para a sobrevivência do grupo.

Ao homem negro, despreparado e marginalizado do processo de industrialização nascente, restam as tarefas sociais mais humilhantes e a marginalizadas. Neste contexto, a mulher negra tomará a si a responsabilidade para manter a unidade familiar, a coesão grupal e preservar as tradições culturais, particularmente as religiosas. Apesar das condições subumanas que a escravidão/ "liberdade" deixou a população negra, as mulheres negras lograram encontrar maiores opções de sobrevivência do que o homem negro. Elas foram para as cozinhas das patroas brancas, foram para os mercados vender quitutes, desenvolveram todas as estratégias de sobrevivência; assim criaram seus filhos carnais, seus filhos de santo abrigaram seus candomblés, adoraram seus deuses, cantaram, dançaram, e cozinharam para eles(12).

A mulher negra, assim, encontra no candomblé não apenas plenas possibilidades de realizar-se religiosamente, como também política e socialmente. Com efeito, na cosmovisão das religiões de matriz africana não existe uma distinção muito nítida entre o sagrado e o profano, estas duas esferas interpenetram-se.

A mulher que quotidianamente, no mundo ocidental, vive em conflito(13) com o social, porque relegada a um plano inferior da existência em sociedade, encontra-se nos ritos do candomblé a forma de ritualizar este conflito. Assim, se cozinhar é uma tarefa menor, sem valorização social, assim como as atividades domésticas em geral, no candomblé tais tarefas possuem um valor inestimável. A realização das referidas tarefas é um privilégio que não cabe a todos. Essa valorização redimensiona o papel da mulher tanto no plano místico do candomblé, quanto no plano social.

Maria de Lourdes Siqueira vai dizer que:

Este sentimento de intimidade da mulher negra com a mitologia e com a ritualidade religiosas afro-brasileiras abre caminhos para que ela vai conhecendo, ampliando, recriando e transformando, numa forma de poder socialmente construído, assumindo papéis que vão se redefinindo a cada passo: ora mãe, ora educadora, ora curadora, estabelecendo relações sociais, políticas e mesmo diplomáticas(14).

Como a mulher, no candomblé, comumente dirige os "terreiros" na figura da yalorixá, da mãe-de-santo, ela conhece todos os rituais e segredos da mística religiosa afro-brasileira, além de ser a responsável pela administração da "roça" . Ora, " aprendendo e ensinando a religião dos orixás, a mulher negra desenvolve suas próprias capacidades administrativas, políticas-sociais, humanas e religiosas"(15).

A valorização da mulher não implica a dominação dos homens. No candomblé, apesar dos conflitos, não existe esta pulsão de eliminação do outro porque este outro é diferente. Como vimos insistindo, o que existe é a complementaridade das funções, e não o predomínio de um gênero sobre o outro. Isto só é possível porque na cosmovisão do candomblé , a "existência dos orixás essencialmente femininos, de orixás essencialmente masculinos e de orixás ambivalentes ou andróginos, expressa uma compreensão profunda da própria sexualidade humana"(16).

Notamos, assim, que a cosmovisão implícita do candomblé está em conflitos estruturais com a cultura do ocidente. Seja pela valorização da mulher em sua dimensão política, religiosa ou social, seja pela compreensão do ser humano longe do binarismo homem-mulher, o candomblé apresenta-se com valores civilizatórios mais coletivos, mais integracionistas, mais humanos que os modelos ocidentais. Daí, Sueli Carneiro e Cristiane Cury afirmarem que "a organização social do candomblé procurará reviver a estrutura social hierárquica de reinos africanos (especialmente de Oyó) que a escravidão destruiu, porém na diáspora esta forma de organização visará reorganizar a família negra, perpetuar a memória cultural e garantir a sobrevivência do grupo e, ainda, a transmutação nos deuses africanos será a fonte de sustentação dessas mulheres para o confronto com uma sociedade hostil"(17)

 

Considerações Finais

Este último item do artigo não procurará tecer considerações cabais sobre as temáticas aqui abordadas, até porque isto não seria possível para nossa competência; pretendemos, outrossim, apontar para algumas questões emergentes - que o presente trabalho tenha abordado, mas não desenvolvido.

É importante ressaltar que nossa preocupação básica é saber como manter a cosmovisão das religiões de matrizes africanas, tributárias de uma longa tradição, frente aos desafios do mundo capitalista contemporâneo.

No primeiro item deste trabalho fizemo-nos duas questões: 1) em que medida a visão de mundo é inerente ao candomblé é capaz de apontar respostas para a crise do modelo ocidental; 2) em que medida o candomblé ao absorver elementos da cultura ocidental, ao adaptar-se à modernidade dos novos tempos, não perde juntamente os elementos estruturais de sua cosmovisão africana?

Tanto no primeiro, como no segundo item, pensamos ter desenvolvido alguns elementos que se constituem como alternativas ao sistema capitalista. A visão de mundo do povo-de-santo , é integrativa e não excludente; é humanista e não tecnicista; é polivalente e não totalitária; constitui uma unidade dos elementos, e não uma fragmentação dos mesmos. Como as pessoas advindas de culturas não-africanas não encontram em suas culturas de origem os valores capazes de lhes proporcionar uma vivência digna e justa, elas encontram nas religiões de matrizes africanas um outro sistema de valores e princípios que não estão aprisionados pelo racionalismo, pelo cientificismo ocidental, pelo individualismo liberal. Ao contrário, o inesperado, o desconhecido, são esferas presentes nas religiões de origem africana. O irracional também faz parte do sistema. O afeto, a emoção, a dança, a festa, a dor, o prazer, são esferas que se complementam, são dimensões que abarcam toda a complexidade humana.

O vínculo estreito do povo-de-santo com a natureza, e o estreito vínculo destes com as divindades, fazem do candomblé uma religião imanente, longe das abstrações metafísicas das religiões transcendentes. Num mundo onde o artifício domina o natural, onde o controle procura desesperadamente conter o irracional, como é o caso do mundo ocidental, onde as pessoas e os saberes são fragmentados, onde os interesses individuais subjugam os interesses coletivos, a religião comunitária do candomblé representa uma alternativa viável, representa uma volta à origem humana e seu contato com a natureza, representa uma relação corporal com os "deuses" - orixás, representam uma vivência coletiva, em sociedade, representa uma potencialização da sexualidade humana e a recuperação do feminino num mundo predominantemente masculino. Assim, esses elementos estruturantes do candomblé apontam respostas concretas para a crise dos modelos ocidentais.

Porém, em que medida o candomblé, ao absorver elementos desses modelos ocidentais, ao permitir o ingresso de pessoas não tributárias da origem africana, ao se situar no seio do capitalismo, não perde a caracterização de seus elementos estruturantes. A pergunta, de fato, é a seguinte: como atualizar a tradição? Como vivenciar uma religião eminentemente natural num mundo predominantemente artificial? Como vivenciar uma cultura africana se o nosso modo de pensar está estruturado e assentado no modo ocidental de pensamento, numa estrutura mental própria do ocidente, e disto somos herdeiros simplesmente pelo fato de termos nascido nesta sociedade?

Aqui aparecem alguns problemas com os quais muitos teóricos têm estado às voltas, sem, no entanto, chegara resultados muito satisfatórios. A questão da linguagem, da cultura, das estruturas de pensamento, tornam-se limites para a questão aqui abordada(18). No entanto, gostaríamos de rapidamente apontar para um projeto de pesquisa que talvez tornasse possível a reflexão de tais temas de maneira a não recair em redundâncias semânticas ou em totalitarismos políticos, e nem em ramificações religiosas.

O uso de códigos binários, bem-mal, certo-errado, céu-inferno, masculino-feminino, direito-esquerdo, não contempla a pluralidade do ser humano e suas sociedades. O real é muito mais dinâmico do que pretenderam os metafísicos do séc. XVII e os iluministas do séc. XVIII; é mais contingente do que imaginou a ciência moderna e muito mais sedutor do que imaginaram os teóricos até nosso tempo.

Talvez a física contemporânea, juntamente com a biologia e a química, sejam os ramos da ciência que começam a detonar os antigos paradigmas cartesianos-newtonianos. A interdependência, a interação e a flexibilidade que esses saberes apresentam, em muito, lembram os princípios tradicionais das religiões de matrizes africanas - em especial o candomblé.

A condição humana, por exemplo, não é expressa pelo binário homem-mulher. No panteão do candomblé existem orixás eminentemente femininos, eminentemente masculinos, e orixás andróginos, isto é, feminino e masculino ao mesmo tempo. Essa trindade, esse terceiro, é a possibilidade de várias expressões do humano sem reduzi-lo à binaridade calcificante.

Também no candomblé a flexibilidade do sistema é notável. Sua cosmovisão é sempre redefinida e atualizada, mantendo entretanto, os elementos estruturantes como a interação, a interdependência, o comunitário, a ligação com o natural, entre outros.

Isto permite dizer, ao menos, que existem elementos, tanto em ciências consagradas, a física, a biologia e a química, ou em religiões tradicionais, como o candomblé, que permitem-nos afirmar, a não existência de um único universo de valorização, uma única teoria interpretativa, um único modelo de pensamento. A crítica ao eurocentrismo, ao falocentrismo, ao etnocentrismo já foram feitas várias vezes. É preciso, no entanto, aprofundar tais críticas, a fim de mostrar, seja no âmbito ontológico (SER), econômico (CAPITAL), linguístico (SIGNIFICANTE) ou religioso (DEUS), que todos esses elementos são erigidos como equivalentes gerais modelizando todos os outros universos de valorização, reduzindo a realidade a uma repetição e adequação a esses signos dominantes(19).

Assim, falar em cultura ocidental é perceber no conjunto de territórios que organizados segundo uma lógica comum, de acordo com os mesmos signos dominantes, os equivalentes gerais que dominam todos os outros planos. Esta dominação, porém não é absoluta, pois além do regime dominante dos signos existem também os regimes passionais, os pré-linguísticos, ou seja, regimes pré-sinificantes, contra-significantes e pós-significantes. Não vamos adentrar nesta questão pois apenas queremos frisar que o modelo torna-se dominante historicamente, ou seja, eles não são eternos, imutáveis, inatos, mas construídos, humanamente construídos. Por isso, podemos, com base no próprio movimento histórico e nos vários campos semióticos que povoam a realidade, afirmar que tal modelo é hoje dominante mas nem sempre foi e não precisa ser para sempre. Isto nos abre a possibilidade de enxergar os vários universos que convivem e se afetam no mesmo espaço geopolítico. Procuramos, portanto, não recair num binarismo ingênuo de ocidental-africano. Destacamos apenas os elementos estruturantes, mas sabemos que existe uma diversidade fantástica no interior de cada um desses espaços.

Até aqui estamos pensando a atualização da tradição das religiões de matrizes africanas - especialmente o candomblé. Ou seja, a cosmovisão que esta religião apresenta é compatível com as aspirações das maiorias das pessoas deste final de milênio. Mas alguns problemas persistem(20):

# Se o candomblé é uma religião que não sobrevive sem seu "espaço-mato", sem a natureza, o que fazer se rapidamente a sociedade capitalista destrói e devasta nosso espaço natural?

# Se acabarem-se as folhas, as ervas, como manter os ritos, como agradar os orixás?

# A distância da natureza artificializa o homem. Basta ver as grandes cidades e compará-las com o campo. A desumanização do homem tem a ver com sua artificialização. Como manter uma cosmovisão com um homem artificial?

# Simbolizar estes espaços naturais resolvem o problema? Realizar os ritos de candomblé num apartamento onde o som 3 em 1 representa os atabaques, uma samambaia o espaço-mato, e uma bacia de água a fonte de Oxum (por exemplo) não seria um esvaziamento muito violento às energias, à força vital presente no rito?

# Cultuar Ogun sobre o motor de um carro, ligar Exu ao sistema de informática, etc., não é, de alguma forma, ridicularizar o culto. Não é perigoso fazer tais associações, visto que a tecnologia, por exemplo, como tem sido usada, é um dos principais fatores que excluem o povo negro de uma vida digna?

# Assumir signos que são ícones do capitalismo, como apartamento, motores, informática, não é ser por ele subsumido?

# O candomblé possui um caráter elitista? Seus ritos que demandam custos, são compatíveis aos mais pobres? Ele não é economicamente excludente?

# A hierarquia dura do candomblé, seu "conservadorismo", até que ponto são suscetíveis de mudanças?

# Como associar o candomblé a uma perspectiva de militância política organizada?

# Em que medida o candomblé não cumpre uma função no interior do sistema capitalista?

# O que fazer para não ser apropriado os signos do candomblé, uma vez que o capitalismo sobrevive destas absorções?

# Ele é monoteísta ou politeísta? Sincrético ou original?

# É uma religião de negros ou de todos?

# Como pensar o candomblé em tempos de globalização?

# Como o candomblé lida com as doenças como a AIDS e outras doenças transmissíveis pelo contato com o sangue?

# Qual nosso projeto em relação ao candomblé?

 

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NOTAS:

1 OLIVEIRA, Eduardo David é graduado em Filosofia - UFPR e Pós Graduado em Culturas Africanas e Relações Inter-Étnicas na Educação Brasileira- Faculdades Integradas "Espírita".

2 DE SOUZA, Marcilene Garcia é graduada em Ciências Sociais - UFPR e Pós Graduada em Culturas Africanas e Relações Inter-Étnicas na Educação Brasileira- Faculdades Integradas "Espírita"

3 PAULA, Maria José da Silva S é graduada em Pedagogia, e Pós Graduada em Culturas Africanas e Relações Inter-Étnicas na Educação Brasileira- Faculdades Integradas "Espírita" além de Mestranda em Educação pela PUC-PR.

4 Para abordar o primeiro e o segundo item do presente artigo recorreremos aos textos utilizados no módulo: "Gênero, Concepção e Prática mas tradições culturais religiosas de matriz africana", promovido pelo curso de Especialização sobre Culturas Africanas, promovido pela Universidade "Bezerra de Menezes", através de seu departamento - o CENTRHU : Centro de Estudos das Tradições Religiosas da Humanidade.

5 CARNEIRO, Sueli; CURY, Cristiane. O candomblé p. 176

6 CARNEIRO, Sueli; CURY, Cristiane. O candomblé p. 179

7 RIBEIRO, Ronilda. Alma Africana no Brasil, p. 43-44.

8 Para usar a expressão de Max Weber.

9 CARNEIRO, Sueli; CURY, Cristiane. O candomblé. p. 176.

10 Voltaremos a esta temática no item 3.

11 CARNEIRO, Sueli; CURY, Cristiane. O poder feminino, p. 19.

12 CARNEIRO, Sueli; CURY, Cristiane. O poder feminino, p. 26.

13  "O conflito constantemente vivido entre aquilo que é socialmente imposto se ritualiza todo o tempo". Idem, p. 24.

14 SIQUEIRA, Maria de Lourdes. Iyami, Iyá Agbás. Dinâmica da espiritualidade feminina em templos afro-baianos. p. 443.

15 Id. Ibid. p. 444.

16 CARNEIRO, Sueli; CURY, Cristiane. O poder feminino. p. 24.

17 Idem. p. 26.

18 Estes temas merecer ser desenvolvidos num trabalho à parte.

19 É, talvez Guattari, juntamente com Deleuze, que desenvolveram essas reflexões na obra: "Caosmose, Revolução Molecular, Microfísica do Poder, As três ecologias".

20 Aqui vamos nos limitar a pontuar estes problemas para que em outro momento possamos pesquisar e desenvolver.


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BIBLIOGRAFIA


CARNEIRO, Sueli; CURY, Cristiane. O candomblé . Mimeo.

CARNEIRO, Sueli; CURY, Cristiane. O poder feminino. Mímeo.

RIBEIRO, Ronilda. Alma Africana no Brasil. Os Iorubás. São Paulo: Editora Oduduwa, 1996.

SIQUEIRA, Maria de Lourdes. Iyami, Iyá Agbás. Dinâmica da espiritualidade feminina em templos afro-baianos. Mímeo.